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Crónicas

A revolução não se fez num dia

O que eu sei é que, de um dia para o outro, passámos a brincar às eleições como dantes se brincava às mercearias ou como depois inventámos uma nave pelo espaço no “Caminho das Estrelas”

Eu não sei dizer onde estava no dia da revolução, não tenho sequer uma daquelas imagens vagas como as que guardei da minha avó, uma senhora alta, toda vestida de cinzento, a sair da cozinha com um vime para meter na ordem os gatos pardos que a minha tia Conceição adorava. Também me lembro do dia em que a senhora Celeste fez as malas e foi viver para a América e sei que tudo isto aconteceu antes do 25 de Abril.

A memória não me deixou uma lembrança do “dia inicial inteiro e limpo” como escreveu Sophia de Mello Breyner Andresen, talvez por viver no Laranjal, um lugar onde tudo levava tempo a chegar. A revolução teve de fazer a viagem pelas curvas do caminho até nos entrar pela porta e virar tudo ao contrário tal e qual como aconteceu em todos os outros sítios onde havia pessoas ansiosas por viver melhor. E desses anos, daquilo que ficou conhecido como o tempo do 25 Abril, disso eu lembro-me.

O que me ficou na cabeça são lembranças de uma criança, não está classificado como bom ou mau. O que eu sei é que, de um dia para o outro, passámos a brincar às eleições como dantes se brincava às mercearias ou como depois inventámos uma nave pelo espaço no “Caminho das Estrelas”. Em 1975 e 1976 corríamos atrás dos carros de propaganda para recolher os papelinhos espalhados no chão. O meu irmão, depois, fez uma urna com um caixote de papel e ficava de fora do jogo quem dissesse em quem tinha votado.

Até eu, que ainda não andava na escola, aprendi a ler as siglas e os slogans pintados nos muros. O fascismo não era bom, mas, entre as minhas tias, os comunistas também não, era por causa dos terrenos e das casas e das galinhas. A minha mãe e as minhas tias não queriam partilhar as galinhas. E todas as tardes, ao chegar a casa depois de passar horas a bordar e a imaginar o futuro com os comunistas no poder, a minha mãe fazia uma vistoria ao quintal a ver se havia por lá uma bomba.

As bombas da Frente de Libertação da Madeira, mais conhecida por FLAMA, metiam medo a pessoas como as minhas tias e a minha mãe, pessoas normais apanhadas pela história, adultos a meio de uma revolução e sem qualquer conhecimento de política. Não me lembro de as ouvir falar da independência, não sei se tinham opinião sobre o assunto, mas, católicas como eram, não viam vantagem na violência. A luta separatista valeu-me um susto dos grandes quando a tropa cercou o hospital. Aquele cerco, com os soldados armados, a barrar a entrada ficou-me colado à pele. Eu tinha quatro ou cinco anos e a minha mãe estava lá dentro, numa enfermaria do 7.º andar.

Os vizinhos que estavam em Angola voltaram e eu lembro-me de cobiçar os colares de missangas que traziam ao pescoço e enrolados nos pulsos. No quintal as mulheres contavam como tinham fugido pela estrada, com barricadas e tiros e era uma sorte estarem vivos. Angola já não era nossa, diziam, com o desalento de quem tinha perdido tudo. Isso eu não sabia bem o que era, mas não ia demorar muito até o assunto – o ser retornado – se tornar matéria para insultos entre nós, os miúdos, quando se levantava uma zaragata.

Quando o processo revolucionário em curso terminou o meu pai já estava desempregado. Lembro-me de que foi essa a profissão que lhe atribui na 1.ª classe, certa que me dava estatuto. Os desempregados apareciam muitas vezes na televisão, tantas como o aumento do custo de vida e do preço do cabaz. E as coisas que apareciam na televisão, à excepção da guerra e das paradas do exército vermelho em Moscovo, eram boas.

A nossa vida estava virada de pernas para o ar, mas os meus pais estavam felizes. A minha mãe até foi dar o exame da 4.ª classe de adultos e o meu pai comprou uma televisão. O futuro só podia ser melhor, aquela esperança que lhes trouxe o 25 de Abril nunca mais os abandonou.