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Crónicas

O tempo ao mar

A chuva tornava tudo mais feio e difícil, até a minha adolescência

Os azulejos da cozinha transpiravam e um carreiro de gotas de água descia pela porta do frigorífico nos dias em que a minha mãe decretava como os dias do “tempo ao mar”, com chuva e um ar húmido que se agarrava a tudo: aos lençóis frios, às janelas e às bolachas esquecidas em cima da mesa. E era por isso que havia uma lata grande onde se guardava o pão torrado, as broas, os bolos de mel e as bolachas, era a única maneira de as salvar daquele tempo estranho, escuro e pegajoso.

O nevoeiro rondava pela copa dos pinheiros, outras vezes chegava ao quintal e mal deixava ver a curva do caminho e a fazenda do meu avô. Ou então chovia muito, sempre, sem parar e eu lembro-me de ficar parada a ver água cair nas flores, nas laranjeiras, a encharcar a terra e correr pelos degraus da entrada. O ribeiro enchia e arrastava pedras e entulho e o barulho da corrente enchia a tarde. Ninguém se atrevia a meter o nariz fora de casa e não se ouvia sequer o ladrar de um cão.

A minha mãe fechava portas e janelas, ligava o candeeiro articulado e bordava na sala de frente para a janela, enquanto ouvia de hora a hora as notícias na rádio para saber do mundo. Nesses dias nem a minha tia Alice aparecia para adiantar o caseado e o ponto francês, nem a minha mãe ia a casa das minhas tias. A chuva formava um lago no meio do caminho e lembro-me de estar nas aulas com o desconforto nos pés molhados e de me preocupar com o caminho até à paragem na Avenida do Mar.

Eu fazia parte desse grupo, dessa massa adolescente que ia e vinha da escola nos autocarros velhos que, nos anos 80, ligavam as zonas altas ao centro. Os outros, uma parte importante dos meus colegas, vivia perto ou tinha o pai ou mãe para os ir buscar nos dias de temporal. Nós tínhamos um guarda-chuva e coragem suficiente para fazer o caminho dos Ilhéus à Avenida, a tentar fugir dos carros que espalhavam água suja em cima dos passeios e de quem estivesse a passar.

O desconforto nos pés estendia-se às pernas, aos braços, havia lama agarrada aos tornozelos e às calças quando entravámos aliviados para o autocarro. Aquelas carcaças velhas tinham janelas que não abriam e outras que não fechavam, portas perras e ainda assim enchiam de pessoas ansiosas por chegar a casa e satisfeitas por estar abrigadas. Pouca diferença fazia o calor, se entrava chuva e vento, nem os buracos na estrada e os solavancos, todos queríamos estar longe dali.

Eu queria libertar-me dos sapatos, da roupa molhada e estar em casa, no meu quarto ou na porta da sala a ver a água a correr pelo quintal e espreitar o céu, à espera de uma aberta. A chuva tornava tudo mais feio e difícil, até a minha adolescência com aqueles sapatos que a minha mãe desencantava nos saldos e as roupas quentes, que davam comichão e me faziam sentir estranha. O tempo ao mar era um martírio, um ar húmido que estragava tudo, até as bolachas que ficavam esquecidas e fora da lata.