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Erro(s) e falhas de memória

Na área da política, na quase totalidade das vezes o erro é categoricamente negado por quem exerce o poder

1. O erro faz parte da condição humana. Muitos (para não dizer “todos”) sentem um qualquer tipo de constrangimento/inibição em dizer ou confessar que erram, falham, que se enganam ou fracassam, que produziram asneiras, anomalias/desvios (e algumas vezes excessos) ou que têm por verdadeiro aquilo que é falso. Larga fração da experiência humana é constituída por erros, mas é conveniente não cometer sempre os mesmos e principalmente aprender com os dos outros (e analogamente com os nossos!). É ainda oportuno aqui mencionar que devemos evitá-los, ultrapassá-los e corrigi-los e que a proveniência do erro está muitas vezes no desejo, na impaciência/imprudência, na ignorância e na cólera. Defender e persistir no erro (ou engano), é querer sofrer e, já diz o povo, colossal estupidez e burrice! Porém, alguns teimam em praticá-lo. Há, também casos em que o erro é, digamos, “benéfico”. Por exemplo, no âmbito da educação o erro é indispensável. Muito do progresso no processo de ensino-aprendizagem faz-se por “tentativa e erro”. Aqui não deve haver receio/medo em fracassar ou falhar, até porque será precisamente o erro que vai desvelar algumas das ‘verdades’ (saberes, competências, factos…) de grande valor que há para descobrir. Diz-nos a ciência da Psicologia que este é um método básico de aprendizagem e que praticamente todos os animais o usam para aprender novos comportamentos. Tentativa e erro é o primeiro modo de aprendizagem e ocorre justamente através dos erros, enganos, falhas, lapsos, “disparates”, os quais são necessários para que existam novas e mais tentativas, tornando assim provável encontrar-se a forma correta de lidar com um determinado problema/dificuldade ou questão. Este processo será continuamente repetido até que o sucesso – ou a tão pretendida solução – seja alcançado/a.

A este propósito, o conhecido behaviorista norte americano Edward Lee Thorndike, na sua Lei do efeito, diz-nos que existe uma seleção das respostas adequadas e adaptativas, com eliminação das respostas inadequadas (erros), com base num determinado condicionamento – relação entre um comportamento e um estímulo – , encontrando-se finalmente o comportamento ajustado em função do estímulo ostentado. Todavia, não podemos dizer que a aprendizagem realizada pelos animais por tentativa e erro é o padrão da aprendizagem humana. Esta última não é somente uma mudança comportamental, mas algo mais complexo e de assinalável importância.

Possui também grande utilidade a incerteza e o erro na investigação/experimentação científica. “Ensaio e erro” é o processo elementar na Ciência e por meio do qual se constrói e adquire “inovador” e atualizado conhecimento. O erro tem fulcral valor na descoberta e progresso científico. Muita da inspiração e inquietação dos cientistas advém dos erros metodológicos e dos resultados negativos obtidos na pesquisa, pelo que é essencial a compreensão destes “equívocos”. Para o epistemólogo Gaston Bachelard, o espírito científico é essencialmente uma retificação do saber, um alargamento dos quadros do conhecimento e “a sua estrutura é a consciência dos seus erros históricos”. Já para o vienense Karl Popper, autor do famoso critério da falsificabilidade, o erro é igualmente determinante, mas agora para demarcarmos as teorias científicas das não científicas e para refutarmos as científicas. Por outras palavras, uma boa teoria científica é aquela que consegue resistir aos mais rigorosos/severos testes que conseguimos conceder – à sua falsificação (ao erro) – e, enquanto resiste, ela não é rejeitada, mas corroborada.

2. Na área da política, na quase totalidade das vezes o erro é categoricamente negado por quem exerce o poder. Em Portugal, quando uma decisão política resulta em sucesso, em êxito, em mais ou maior satisfação para a população, o governante e responsável político aparece logo na primeira linha, mas quando o resultado é negativo, um fiasco, um erro ou falha grave – numa palavra, um “escândalo” –, então ninguém está disponível para assumir e responder por o quer que seja. Deste modo, em pleno século XXI, na nobre atividade política, a máxima “errare humanum est” continua a ser desacreditada, pois esta “infecta” (lesa) a imagem (mediática) daquele que assume a falha/engano e arruina a sua carreira e promitente futuro político. Para o ‘excecional’ político, o erro deve ser dissimulado ou negado até contra as mais enérgicas e sólidas evidências, pois os eleitos e representantes do povo julgam-se infalíveis e, nalguns casos, até acima do comum dos mortais. Pelos vistos não é muito nobre pedir desculpas pelo(s) erro(s) gerado(s) – reconhecimento – e apresentar uma justificação plausível ao comum cidadão-eleitor, aquele que na maioria das vezes colherá os frutos (nomeadamente, custos) desse mesmo erro. Ora, coincidência ou não, no dia em que se assinalou um ano da conquista da maioria absoluta do Partido Socialista nas eleições legislativas de janeiro de 2022, o primeiro-ministro António Costa, admitiu (a muito custo) que o seu Governo “pôs-se a jeito e cometeu erros”, mas que também existiram problemas dentro do executivo.

Não especificando quais os erros perpetrados e os distintos autores, também não ecoou no seu bem preparado e articulado discurso (e algo inflamado, por motivo de certas questões que lhe foram dirigidas) a eloquência de um pedido de desculpas pelos aludidos erros na governação aos milhões de portugueses que, abono, cuidadosamente o escutaram e interpretavam as suas expressões faciais. (Relembro aqui a popular frase de Cícero que declara que “o rosto é o espelho da alma”, recuperada recentemente pelo jornalista Miguel Sousa Tavares numa entrevista onde disse “basta olhar para a cara deles”.) Sem memória, não avaliando bem o passado recente ou sobriamente por pura estratégia política, já neste mês de fevereiro o governo socialista voltou a cair no erro (político), desta vez com a apresentação do Programa “Mais Habitação”, que no entender de toda a oposição, algumas associações ligadas ao sector e vários comentadores da nossa praça é, por um lado “insuficiente para fazer face às reais necessidades dos portugueses” e, por outro, “estatizante”, inaceitável, ilegal e inconstitucional, na medida em que viola nitidamente o direito à propriedade privada. António Costa não é propriamente noviço nestas andanças – e, logo, inocente – e poucas horas depois lá pôs um secretário de Estado a admitir “aperfeiçoamentos” na proposta, por exemplo, relativa ao alojamento local, e vai agora – pois já estão no horizonte as eleições Europeias de 2024 e as Autárquicas de 2025 – querer envolver os municípios, porque sem eles todas estas novas medidas legislativas são inúteis e ineficazes, ou seja, vãs. Como se percebe, se a coisa vier a correr mal (fracassar), se as medidas não passarem do papel ou existirem graves falhas (erros), a culpa/responsabilidade já está descartada e projetada para terceiros, tal como aconteceu com os muitos erros (e seus inerentes efeitos) que o (seu) anterior governo cometeu na gestão da pandemia da Covid-19, entre março de 2020 e inícios de 2022. Na RAM a práxis política é em quase tudo idêntica. Os ilustres soberanos do passado e presente “excluem-se” de todos os equívocos, erros, desvarios ou deslizes praticados. Talvez por ‘falhas’ seletivas na memória, negam investimentos desnecessários, obras que resultaram de deliberações e decisões erradas e gastos excessivos para o erário público e, donde tudo somado, se extraiu uma dívida pública global que está hoje ‘levemente’ acima dos 5.500 milhões de euros. (Um esquecimento motivado e minucioso por inibições de variada ordem, e que para infelicidade nossa parece ser uma tendência natural.) Para se furtarem a qualquer relação com os atos e resultados gerados, desafiam agora os cidadãos (e os críticos) a apontarem obras que não deveriam ter sido realizadas, quando algumas delas são por todos conhecidas e nunca chegaram a estar operacionais. Sobretudo para as gerações vindouras, convinha esclarecer se muitos destes erros foram concebidos por ignorância ou deliberados, e aqui a memória pode auxiliar-nos não só a compreender melhor o passado e presente, mas também a projetar o futuro. Acredito (ainda) que os erros e sucessos do passado podem ajudar-nos a criar um novo (e melhor) rumo para o amanhã.