Crónicas

Cuida bem dessa herança

A casa ligava-me ao passado, ao meu pai e à minha mãe e ligava-me ao meu irmão. Não era um palácio não era sequer muito pitoresca

Sei que estávamos a meio da pandemia, com números e casos, máscaras, vacinas e testes e que, nesse tempo, todas as notícias da Covid-19 tinham urgência e, por isso mesmo, atendi o chefe enquanto tratava das galinhas na casa do Laranjal. O chefe estava em Lisboa e eu ali, no meio do galinheiro, a tentar tirar os ovos e a controlar o Tonecas que, sorrateiro, se esgueirara pela porta mal fechada.

Fez-se uma revolução, de galinhas e penas, latidos e um alvoroço que não tive outro remédio a não ser contar a verdade: estava na casa que me ficara de herança do meu pai e a herança tinha uma casa velha, uns terrenos, mais umas 10 galinhas e um cão. E lembro-me de ter pensado que o chefe era uma pessoa de televisão, vivia numa cidade grande e ia lá querer saber da história.

E de como a vida me colocara ali, aos 50 anos, sem saber bem como cuidar das galinhas e da fazenda, com a erva a encher os poios e os vasos das flores no quintal. Incompetente para a função, mas incapaz de cortar os laços e as memórias. A casa ligava-me ao passado, ao meu pai e à minha mãe e ligava-me ao meu irmão. Não era um palácio, não era sequer muito pitoresca.

Quis explicar, não fosse imaginar o que não era. Não ficava num lugar vistoso, para ver o mar é preciso ir ao terraço e quem a vê de fora percebe os acrescentos, os anexos, vê as marcas dos anos. E de como envelheceu, de como perdeu brilho depois de a minha mãe morrer e de como foi também o espelho da decadência física do meu pai. Não, não era um palácio, nem uma quinta.

As árvores davam fruta, havia ovos caseiros e cachos de banana nas poucas bananeiras plantadas junto ao ribeiro e, enquanto enumerava o lado bom da herança, pensava em como nada daquilo que dizia interessava ao meu chefe, que além de estar em Lisboa, teria outros assuntos mais importantes para tratar do que ouvir uma jornalista, daquelas que nem estão na sede, a falar de uma casa e uns metros de terra numa curva apertada na Madeira.

O estranho foi o chefe ter ouvido tudo até ao fim para depois dizer-me, em jeito de conselho: “cuida bem dessa herança, com carinho, com atenção, mas cuida mesmo bem e não te esqueças do que te estou a dizer”. E tenho tentado, penso que não me falta o carinho, o apego, mas acho que continuo incompetente. Os legumes que se plantam crescem pouco ou não vingam, há uma parte desta arte da agricultura que me escapa, mas não desisto, que isto de cuidar é um caminho e eu estou só princípio.