Crónicas

O bom, o mau e os invisíveis

O samba chegou à Câmara do Funchal e, como no tango, são precisos dois para dançar. O presidente afirma que afastou o administrador. O administrador anuncia que pediu para sair. O presidente garante que o administrador trabalha. O administrador diz que tirou um ano de férias. O presidente paga-lhe um salário, mas jura que é obrigação legal. O administrador ri-se e confirma que o pagamento é, de facto, bem legal. E no meio de tanto samba, ficamos todos sem saber. O administrador foi atleta olímpico ou foi só para inglês ver?

O bom: Teatro Metaphora

Se há lugares improváveis, o Metaphora é um deles. Por várias razões. Pelo edifício antigo que ocupava – o Torre Bela – agora transfigurado em unidade hoteleira. Pela pequena sala, escura mas acolhedora, onde se preparou a conquista, também ela improvável, do Prémio Gulbenkian em 2019. Mas principalmente pelas pessoas. A começar pelo José António Barros, fundador e rastilho para tudo o que se faz no Metaphora. Agente da Polícia durante o dia, agente cultural nas horas vagas. A curiosidade pelo cruzamento improvável entre segurança e cultura esmorece perante a dinâmica contagiante do José António. Esse espírito voluntário e aventureiro sente-se nas paredes do Metaphora e vive em todas as pessoas que por ali passam. Essa é outra improbabilidade. Naquela pequena sala, no centro de Câmara de Lobos, havia gente da Bulgária, da Polónia, da Bélgica e da Turquia. Através de uma humilde associação cultural, numa ilha atlântica, conseguiu-se um impressionante intercâmbio cultural com dezenas de países de todo o mundo. Talvez seja essa a verdadeira natureza do Metaphora – um local de partida e de chegada. Como revelava a Sofia, uma das associadas do Teatro, na primeira vez que entrou naquela sala perguntaram-lhe se queria ir para a Polónia num programa de voluntariado. Por isso, o estatuto de utilidade pública que agora é reconhecido à associação evidencia não só a mais-valia do seu trabalho, mas também a profunda transformação pela qual Câmara de Lobos passou. Apesar de tudo isso, no Metaphora continua a acreditar-se que o segredo são as pessoas. O dinheiro e o reconhecimento vieram por acaso.

O mau: Berta Nunes

Em 2019, o Governo de República criou o Programa Regressar através do qual se propunha a apoiar os emigrantes que quisessem voltar ao País. Entre outras medidas, o programa previa um apoio financeiro para aqueles que viessem trabalhar para cá. Curiosamente, apenas seriam válidos os contratos de trabalho assinados em Portugal Continental, ou seja, os emigrantes que escolhessem a Madeira ou os Açores para trabalhar e iniciar um novo capítulo da sua vida estavam impedidos de beneficiar do apoio a que os restantes portugueses tinham direito. Parece de bom senso, que uma lei nacional não deixe de fora milhares de portugueses, sem outra razão que a região onde escolheram trabalhar. Especialmente, quando as regiões discriminadas foram das que mais emigrantes receberam, como foram e são as regiões autónomas. É aqui que entra Berta Nunes, secretária de estado das Comunidades. Com o Governo pressionado a emendar a injustiça criada, a governante foi clara. Inútil, mas clara. O Governo vai reforçar o diálogo com as regiões autónomas. Em linguagem socialista, reforçar o diálogo significa assobiar para o lado. Se estiverem em causa a Madeira e os Açores, também pode significar passar a fatura para cá. A banha de cobra que nos impinge Berta Nunes é antiga e encontra, quase sempre, conforto constitucional. A República até queria ajudar, mas a Constituição reserva essa competência às autonomias. Desta vez, as vítimas são os emigrantes que vivem e trabalham nas ilhas. Sempre que um governante nacional recorre à Constituição para falar de autonomia é para reduzi-la a desculpa de mau pagador. Nesse aspeto, Berta Nunes é apenas mais uma constitucionalista de conveniência. Ainda assim, convém relembrar à secretária de estado que a Madeira e os Açores não são comunidades portuguesas - são território nacional.

Os invisíveis: Os sem-abrigo no Funchal

Custa escrever sobre a miséria. Especialmente, quando a sua presença se torna elemento banal da paisagem de uma cidade. A miséria, que se esconde nos jardins municipais, que se arruma nas esquinas dos edifícios, que se abriga à porta das lojas encerradas, não pode ser invisível. Por vezes, parece que há essa tentação no Funchal. Fazer de conta que não existe miséria nas ruas da cidade. Mas ela persiste. No Jardim Municipal, na Rua do Sabão, na Travessa da Amoreira. Cresce a olhos vistos. Encara a luz do dia. No Funchal, são mais de 100 os que dormem na rua e que juntam à falta de abrigo, problemas de dependência e de saúde mental. É certo que num problema coletivo não cabem culpas individuais, mas qualquer princípio de solução terá de nascer, sempre, na Câmara do Funchal. Governe quem governar. Para isso, não basta arrumar o problema em cacifos ou engavetá-lo em caixas de correio. É preciso cuidar. Dar o peixe, mas ensinar a pescar. Descer do paraíso dos grandes planos e das estratégias integradas e encarar a realidade. A gestão de uma cidade não é só o tráfico de slogans apelativos, a marcha sonâmbula do passa-culpas ou o vaivém entre deve e haver. O governo de uma cidade tem de ser muito mais que isto.