Crónicas

A honra de Fernando Mamede

Quem sabe, afinal, onde fica a fronteira entre a doença mental e o colapso do momento? Quem não sentirá angústia, ansiedade, depressão...

Simone Biles, coqueluche dos Jogos Olímpicos e herdeira aparente de Bolt e Phelps na extraordinaríssima categoria dos super-atletas, desistiu dos Jogos Olímpicos alegando razões de saúde mental.

Presumamos que foi isso mesmo, doença mental, e não outras perturbações neurológicas que se ouvem por aí (fala-se também num caso de “twisties”, um fenómeno que leva os ginastas a perder a noção da frente e do verso em pleno ar).

Não é propriamente a tradição. A tradição é fazer como Fernando Mamede. Recordista mundial dos 10.000 metros durante boa parte dos anos 80, Mamede dominava as bagatelas do fundo, mas fraquejava no instante decisivo. Nos Jogos Olímpicos de Los Angeles, qualificou-se com um tempo promissor na sua distância de eleição, e tornou-se com propriedade na maior esperança para a primeira medalha portuguesa. Na final, com um país colado de madrugada à televisão, abandonou a meio da corrida. Lá se tentou explicar: “Era a prova mais fácil para eu ganhar uma medalha. Não sei o que sinto, não sei o que se passa. Sei tudo, sei que sou o recordista do mundo, que sou mais rápido do que eles. Mas, depois, fica tudo tão confuso. A minha cabeça não aguenta toda aquela confusão… Que grande burrada eu fui fazer. Como é que isto foi possível?”

Houve portanto um tempo – até à semana passada – em que a saúde mental não era um elemento flutuante e alheio ao atleta, mas algo de integral ao desempenho. É essa a ideia que Simon Biles quer mudar, e é por ela que reúne o apoio dos media, mas sobretudo o das redes sociais, e das empresas que hoje as seguem. Nesses ambientes pouco prestáveis à ambiguidade e à fronteira, criam-se já paralelismos entre a decisão da ginasta e a de tirar dias para cuidar da cabeça. E lembram-se as inúmeras vidas destruídas pela agonia do treino e pela pressão da competição, amputadas pela lâmina tão fina quanto absoluta entre o esquecimento e a glória.

Há aí alguma verdade. O desporto, afinal, é afim da guerra, e esse parentesco está na origem dos Jogos Olímpicos. O desporto, como a guerra, faz-se de eliminação e avanço, de hierarquia e classificação, de técnica e recursos, de tribos e nações, de tambores, barulho, estandartes e bandeiras. Se no desporto, como na guerra, o vencedor leva tudo, o desporto será como a guerra assolado pelos destroços e a ruína da derrota.

Ainda assim, o exemplo de Simon Biles é mais perverso do que são.

Quem sabe, afinal, onde fica a fronteira entre a doença mental e o colapso do momento? Quem não sentirá angústia, ansiedade, depressão, nas vésperas dos segundos para que treinou a vida inteira?

E quem pensando na sua saúde mental sacrifica a juventude, o corpo, todas as horas de todos os dias a uma tocha que acende para tão poucos? E não é assim com todo o génio, seja no desporto, nas artes ou nas ciências?

Admiramos os olímpicos precisamente por se equilibrarem, funâmbulos, num fio de onde o comum dos mortais cairia. É possível que Simon Biles advogue por uma vida mais feliz. Mas a felicidade não aspira, não anseia, não luta nem se transcende. Consolada, não é criativa. Para nós, pessoas normais, há virtudes nesta filosofia, que é freio e bálsamo para uma ansiedade quase existencial. No entanto, para uma sociedade que se preze, fica a mancha de um individualismo que não só não resiste, como deixou de apreciar a resistência, e se compraz na apologia e conforto da vítima.

O desporto não é um jogo de soma nula, nem é só uma metáfora para a guerra. É também uma metáfora para a vida. Particularmente, para a inevitabilidade da derrota e do sofrimento, redimida através do esforço, da camaradagem, e da aceitação estóica, mas não resignada dos limites. A escolha de Simon Biles – porque é uma escolha – é a de uma civilização obcecada com a pureza, que acomoda o paradoxo de só competir na certeza da vitória, e perdeu já o atrevimento para lhe exigir que, por lealdade ao país, às adversárias e à modalidade, corresse o mais sublime e humano dos riscos, que é o de perder. Não teria acontecido na China, na Rússia ou no Japão.

E a saúde mental? Ao contrário do que se pensa, prestou-se-lhe péssimo serviço. A mente esconde uma epidemia envergonhada, duradoura, muito medicada e pouco acompanhada, guardada na arrecadação do sistema de saúde, onde ficará até a porta estalar. É estranho, e até penoso encontrá-la aqui, tratada como um sintoma agudo e genérico de mal-estar, invocada por quem teria todas as condições para um diagnóstico e tratamento mais atempados e menos espalhafatosos.

Sabem quantos psicólogos são precisos para trocar uma lâmpada? Só um, mas a lâmpada também tem de querer mudar. Como a lâmpada que não quer mudar, o gesto de Simon Biles contribuiu para a auto-comiseração, e para o estigma da doença insuperável. Não disse apenas que “é ok não estar ok”, sugeriu que era ok desistir.

Fernando Mamede falhou clamorosamente, e cedeu o seu lugar na História ao contemporâneo Carlos Lopes. Mas respondeu ao tiro de uma partida derrotada, e foi nos Jogos até ao fim de si mesmo. Não foi o mais rápido, o mais alto ou o mais forte, mas foi tão rápido, tão alto ou tão forte quanto conseguiu. Correu contra a cabeça, debaixo da sombra do fracasso. Não só se aproximou do ideal olímpico, como do fim último do desporto, que é a reconciliação da Humanidade com o facto de ter um corpo: um corpo falível, perecível e mortal, resgatado desse destino pela alegria do movimento.

O desporto não a guerra. Há honra na derrota, em todos os seres humanos que, não vencendo, persistem. É a honra de Fernando Mamede.