Crónicas

And all that jazz

FOTOGRAMAS

À semelhança da semana passada, hoje aborda-se de novo uma imagem inequivocamente submetida a técnicas de manipulação e com recurso à fotomontagem. Desta feita, estas foram realizadas posteriormente ao ato fotográfico, em laboratório, sobrepondo-se formas pictóricas distintas e tantas vezes tidas como rivais nos debates oitocentistas sobre a invenção da fotografia: a pintura (em aguarela?) e a própria fotografia. Trata-se de uma imagem realizada pelo estúdio Foto Figueiras e datada entre 1940 e 1950, de divulgação da Savoy Orquestra, então dirigida por Laurence Hale, destacando-se abaixo do título da formação e sob a mancha “nublada” de um céu que se ergue sob uma vista panorâmica do Funchal, o retrato de cada um dos seis músicos da formação musical daquele hotel – primeira construção a surgir no lado esquerdo da imagem, logo acima da linha de água da baía. Nas zonas da imagem com menor densidade de informação visual (montanhas e mancha de água), seguem-se três fotografias do conjunto da banda em distintos momentos e com diferentes instrumentos, aparentemente a tocar, provavelmente a simular que o fazia. Os músicos, e portanto a formação, sugerem assim a sua destreza ou versatilidade técnicas enquanto jazz band, onde os menos habituais acordeão e concertina se juntam à guitarra, ao contrabaixo, ao saxofone, ao piano, à voz, à bateria, às maracas e ao clarinete. Jazz band do “Funchal, Madeira”, sinaliza-se para que não haja equívocos quanto à localização e reiterando-se a inscrição da imagem numa iconografia de divulgação turística da ilha, onde a beleza natural, a tranquilidade e a semi-tropicalidade vão a par com a sofisticação e o cosmopolitismo como ideários implícitos.

Em particular, o cosmopolitismo vivido nos casinos, clubes e hotéis de referência de então, que as jazz bands animavam e ao qual davam expressão através da sua vocação vanguardista. Esta projeção através da imagem fixa de uma cultura do lazer, da confluência cultural e da fruição turistíca, fez-me migrar para uma fotografia da autoria de João Pestana utilizada na capa do disco de 1970 Madeira Love de Roger Sarbid, com a participação de Tony Cruz (também) no Savoy Hotel. Aí, a desbunda da música enquanto prática e entretenimento associa-se às novas formas de viver a juventude e de exibir, de forma mais ou menos explícita, uma contra-cultura que indubitavelmente circula, habita (e restringe-se?) aos sedutores micro-mundos dos espaços turísticos. Na expressiva imagem de Pestana atualmente em exposição no Museu de Fotografia da Madeira – Atelier Vicente’s, esta (contra) cultura surge de um modo simultaneamente performatizado/encenado e descontraído/dinâmico.

Ambas estas imagens são sintomas da importância do jazz nas suas mais variadas expressões e linguagens na cultura, economia e sociabilidades da Madeira e da cidade do Funchal, em particular, para cuja história destacamos o contributo dos trabalhos do músico e musicólogo Vítor Sardinha. As suas personagens, meio conhecidas, sobretudo anónimas, fazem-nos também pensar nos músicos que ainda hoje vivem exclusivamente da performance ao vivo em hotéis e bares da ilha e que no último ano têm vindo a atravessar uma dura conjuntura. Que o verão que agora espreita se adivinhe repleto das suas notas e improvisos.

Ana Gandum
com a colaboração do Museu de Fotografia da Madeira – Atelier Vicente’s.