Crónicas

Da dimensão da política

1. Disco: “Reprise”, o último disco de Moby, está longe de ser o seu melhor. Mas, caramba, é Moby. Uma reunião de temas antigos, os seus e os de outros, agora vestidos com novas orquestrações e numa abordagem acústica. Uma excelente audição que acompanhou o que hoje aqui vai escrito.

2. Livro: faz, por estes dias, 11 anos que a minha mãe morreu. Quem já passou por isso sabe do vazio que fica, da incompreensão que morde. Se, no resto do ano, consigo viver bem com isso, nesta altura do ano, já não é tão fácil. Tenho um livro que me tem acompanhado: “Morreste-me”, de José Luís Peixoto, onde aprendo o quão é importante o que fica. Descobri, agora, “Notas sobre o Luto”, da nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie. Um livro sofrido, escrito a quente, logo após a morte do seu pai. Uma abordagem diferente, mas que, também ela, nos ajuda a superar a dor. São dois livros pequenos, do tamanho da morte, mas que enchem a alma.

3. A palavra “política” tem a sua raiz etimológica no grego politikos que significa “cívico”. Por sua vez, politikos vem de polites, que significa “cidadão”, que deu depois origem a polis, “cidade”. Tudo isto para dizer que a política tem, em primeiro lugar, a ver com o exercício da cidadania a que cada um está obrigado. Repito, obrigado.

A maior parte de nós olha para a política identificando-a com o exercício do poder, mas a sua dimensão é muito maior do que isso. Podemos observá-la, como metodologia que procura a decisão, em todas as interacções que envolvam grupos humanos incluindo aqui as instituições oficiais, os grupos de interesse, os partidos e as organizações religiosas e, até, a família. Está presente nas relações sociais que estabelecemos envolvendo autoridade ou poder, na regulamentação, nos métodos e processos definidos para formular e aplicar a toda e qualquer forma de decisão. A política está em todo o lado e afecta-nos em todas as decisões que tomamos, ou que nos recusamos a tomar.

Não se esgota no acto de votar que, sendo importante, está longe de conter toda a dimensão do que representa. E, no entanto, são muitos os que assim pensam. Alhear-se da política é prescindir do poder de intervir e de ajudar na decisão. Devemos intervir mesmo que o resultado seja contrário ao que pensamos e cremos.

Há séculos que filósofos, pensadores, escritores, estudiosos, se dedicam a reflectir sobre o que é a política, quais as áreas da sua intervenção, quem afecta e como é afectada, quem decide e como, que relações estabelece, etc. Acertemos numa espécie de súmula e consideremos a política como um processo pelo qual um grupo de pessoas, cujas opiniões ou interesses podem ser divergentes, chega a uma decisão considerada vinculativa para o grupo e aplicada comummente.

É pela política que podemos alcançar objectivos que não poderíamos realizar como indivíduos. Surge, necessariamente, sempre que grupos de pessoas decidem livremente viver em conjunto. Por isso, implica uma dimensão de cedência individual de modo a que o consenso seja atingido. A política como arte da negociação de modo a estabelecer plataformas aceites por todos, que permitam a distribuição equitativa de recursos, a alocação de benefícios e de encargos, e a gestão de conflitos.

Deve apoiar-se no governo limitado, pois só este fornece uma base estável de protecção dos direitos individuais, e procurar promover o bem comum, em contraste com o governo ilimitado, que põe em perigo esses valores. O governo limitado é um governo constitucional que reconhece o estado de direito como uma componente essencial. Estado de direito que determina que a sociedade é governada de acordo com regras amplamente conhecidas e aceites por todos, seguidas não apenas pelos governados, mas também por aqueles que detêm a autoridade.

Mas a política não se esgota aqui. Aquilo que muitos designam por sociedade civil — não gosto do termo, mas há falta de melhor uso-o — tem um papel de grande relevância. Reside nela a esfera de relações e organizações voluntárias individuais, sociais e económicas que, embora limitadas por lei, não fazem parte das instituições governamentais. Organizam-se num domínio onde os indivíduos estão livres das interferências irracionais da governação. Ao fornecerem centros independentes de poder e influência, são um meio indispensável para manter um governo limitado.

As liberdades políticas e económicas, e o governo limitado, têm uma relação circular. O governo limitado protege as liberdades políticas e económicas e estas, por sua vez, fornecem um meio de manter e reforçar o governo limitado.

Por oposição ao que vai atrás dito, governos ilimitados são os que incluem sistemas autoritários e totalitários.

Claro que as decisões, a maior parte das vezes, não agradam a todos. E assim são muitos, cada vez mais, os que se recusam a fazer parte, os que se consideram apolíticos. Mas até esta, a decisão de não participar, é uma decisão política. Não se envolver é, tão só, ceder, a quem exerce o poder, o direito de por nós decidir. Quer queiramos ou não, a não participação também faz parte do processo de decisão, nem que seja por omissão. Todas as decisões, por maiores ou menores que sejam, afectam-nos a todos. Não querer fazer parte da decisão não nos abstrai da mesma, a não ser que nos tornemos eremitas no meio do deserto, sem contacto com ninguém.

Isto aplica-se a tudo: a cada um de nós, à nossa família, ao trabalho, à escola, ao sítio onde vivemos, ou seja, é transversal a toda a sociedade onde estamos integrados e a todos os níveis do seu funcionamento.

4. O Adão do século XXI não precisa de Eva. E o pecado nem é assim tão original quanto isso. O nosso Adão vive num paraíso mediático onde debita a sua opinião, onde cria e cultiva as suas dependências.

Deus levou seis dias a criar o mundo. Depois moldou o barro e fez Adão. Já não devia estar com muita paciência, depois da trabalheira que teve para criar o céu e pintá-lo com estrelas, planetas e cometas, após criar a Terra e enchê-la de animais.

Este Adão ao perceber que todos tinham parelha menos ele, tratou logo de fazer pela vida. E “Deus”, o que estava mais à mão, tratou de arranjar-lhe uma costela que lhe servisse que nem uma luva: um cargo, um gabinete cheio de gente, carro e motorista, e, qual cereja no topo do bolo, uma missão que só ele podia fazer.

Que fique bem claro que sou acérrimo defensor das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril. Mas há umas coisas que não percebo.

Não percebo porque é que as comemorações são dirigidas pelo governo quando a legitimidade democrática, que a revolução trouxe, reside na Assembleia da República.

Não percebo porque se põem as nomeações à frente do que se pretende fazer.

Não percebo porque se nomeia um “apparatchik” ao invés de alguém que tenha estudado e vivido tão importante data. Os 50 anos de Abril são uma data redonda onde, pela última vez, se pode ter alguém que o vivenciou a dirigir o processo comemorativo.

Não percebo porque é que a nomeação se estende muito para lá da data. Quase mais dois anos. Procurar-se-á dar assim uma nova dimensão à expressão “25 de Abril (para) Sempre”?

A nomeação de Eanes reúne um enorme consenso. A de Adão, não.

5. Não podemos beber poncha ao balcão, mas há quem possa. Não podemos estar na rua com um grupo de amigos de máscara e sem respeitar o distanciamento social, mas há quem possa. Não podemos estar em bares/restaurantes com mais de cinco pessoas na mesa, mas há quem possa. Estou tão fartinho desta terra dos “há quem possa”. Não podemos visitar a ponte de comando de um paquete sem máscara, mas há quem possa. Estou tão fartinho desta terra dos “há quem possa”.