Crónicas

(Ter de) Pescar em águas turvas

A criação deste apoio seria um incentivo para a viabilidade económica da pesca artesanal

A pandemia passou por cima de nós como se de um rolo compressor se tratasse. Para além das consequências ao nível da saúde, as medidas de contenção da pandemia têm afetado ferozmente uma Região que depende maioritariamente do Turismo. No entanto, apesar de absorver a maior parte das nossas preocupações por representar o ganha-pão de muitos e muitas madeirenses, este não é o único setor económico afetado. É que o impacto económico do Turismo (ou da sua falta) é transversal a várias atividades económicas da Região, incluindo o setor primário onde se inclui as pescas.

Foi a pensar no impacto da pandemia neste setor particularmente frágil que o PS-Madeira apresentou uma proposta que foi discutida na Assembleia na semana que hoje acaba. Importa realçar que se o setor das pescas faz parte do nosso imaginário coletivo e das nossas tradições, se é verdade que temos comunidades que sempre viveram e vivem do que o mar nos dá, com muito custo e sacrifício de quem a ele se lança, também é verdade que é cada vez mais difícil trazer sangue novo para a faina. Isto tem várias razões, que não se esgotam apenas no que a saída para o mar significa; poderia não ser tão dura se tivéssemos investido na modernização das nossas frotas, nomeadamente na frota espadeira, criando condições mais condignas para quem sai para o mar nestas embarcações. A tudo isto, acresce o facto de quem realmente arrisca tem um retorno muito menor do que seria justo, por força do preço a que é vendido o pescado em lota, maioritariamente a intermediários, que acabam por ficar com uma grande fatia do preço que é pago pelo consumidor ou consumidora final. Basta pensar, por exemplo, no preço da cavala em lota: cerca de 70 cêntimos. Quando chega ao mercado ronda os 4 euros (uma margem acumulada de quase 470%).

Foi a pensar nesta realidade – e no facto de atravessarmos uma época particularmente difícil no escoamento do pescado porque temos muitas unidades hoteleiras e restaurantes fechados ou a funcionar a pouco gás – que apresentamos um projeto de Decreto Legislativo Regional que propunha a criação de um apoio para implementação do cabaz de pescado. Isto não significaria que qualquer um de nós fosse à lota comprar o peixe. Implicaria que, mediante encomenda prévia, o pescador ou uma associação de pescadores comprasse em lota o pescado necessário para satisfazer as encomendas e depois entregasse o pescado diretamente ao ou à consumidora final, na sua residência ou em outro local escolhido. É exatamente para possibilitar a montagem desta forma de operar que este apoio financeiro serviria.

A operação implicaria a criação um espaço para armazenar e preparar o peixe, para que fosse entregue pronto a cozinhar, isto é, escamado e eviscerado, um espaço que cumpra todas as normas de higiene e segurança para o manuseamento do pescado. Exigiria a criação de uma plataforma digital para a receção e processamento das encomendas. Obrigaria igualmente à aquisição de viaturas apropriadas para assegurar o transporte e entrega, com todas as medidas de higiene e segurança, no local combinado. Como se percebe, exigiria um investimento inicial que a maior parte dos nossos pescadores e armadores não tem condições de fazer, pelo que a aprovação deste apoio governamental permitiria o arranque da operação do cabaz de pescado.

A venda de peixe a quem consome através de cabazes entregues ao domicílio já é uma prática com resultados comprovados noutras zonas piscatórias; começou por ser desenvolvido na Noruega, mas há concelhos do nosso País que já a implementaram, como é o caso da zona de Sesimbra, da Figueira da Foz, da Fuzeta ou da Azenha do Mar. Nestes casos, os resultados têm sido francamente positivos permitindo um maior lucro para quem vende e um preço mais competitivo para quem compra, na medida em que desaparecem algumas das margens que ficam com os intermediários. Na verdade, o princípio subjacente a esta modalidade de negócio é simples: um preço mais justo para quem pesca, um preço mais justo para quem compra para consumir na sua casa.

O cabaz deveria incluir diferentes espécies, quer de baixo valor comercial quer de valor mais elevado, oferecendo diversidade a quem consome. No que diz respeito à estipulação de preços dos cabazes (calculado consoante o peso e o peixe que inclui), seria obviamente da responsabilidade de quem vende, isto é, pelos pescadores.

A criação deste apoio seria um incentivo para a viabilidade económica da pesca artesanal, na medida em que fomentaria o escoamento de espécies mais abundantes. Por outro lado, também contribuiria para o consumo de espécies que sempre fizeram parte da nossa tradição alimentar e que são características das nossas águas, mas que têm vindo a perder terreno nos nossos pratos, como é o caso da cavala, do chicharro ou da boga. Na verdade, seria uma forma de estimular a opção pelo que é nosso, pelo que resulta do trabalho da nossa gente e que faz parte da nossa tradição gastronómica – mas que praticamente não se encontra nas grandes superfícies comerciais.

Tivesse este projeto sido aprovado na Assembleia, e poderíamos avançar para a criação das condições necessárias para que os pescadores investissem e implementassem o Cabaz de Pescado nas suas comunidades, promovendo a nossa soberania alimentar, nomeadamente no que diz respeito ao acesso de produtos de origem regional. Poderia ter sido uma forma de preservarmos a nossa tradição piscatória, de zelarmos pela sobrevivência de práticas ancestrais que rentabilizam, de forma sustentável, os recursos naturais da Região. Uma forma de haver um retorno mais justo para quem arrisca a vida no mar e um preço mais justo para quem consome. Numa Região com uma elevada taxa de risco de pobreza como é a nossa, um projeto desta natureza poderia constituir uma forma de fazer chegar a alguns pratos produtos de boa qualidade que contribuem para uma melhor alimentação das nossas famílias. Infelizmente, não foi aprovado pela maioria PSD/CDS, que até considerou ser uma boa ideia, mas alegou que não seria exequível. O que é no mínimo estranho, na medida em que está provado que é exequível em várias zonas piscatórias com apreciável sucesso.

O PS-Madeira acredita no potencial desta medida. Por essa razão não baixamos braços e consideramos que, a nível Municipal, será possível fomentar o seu desenvolvimento, e por isso mesmo constará do programa eleitoral da candidatura de Jacinto Serrão a Câmara de Lobos. Acreditamos que é uma forma de os nossos pescadores, gente trabalhadora e que muito nos orgulha, tomarem as rédeas do seu destino. Acreditamos que conseguiremos deitar mãos-à-obra.