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O suor do pão

À memória vêm imagens de um filme francês, dos anos 70, à volta de uma clínica de rejuvenescimento

É bíblica esta condição humana de ganhar o pão de cada dia com o suor do rosto, ideia que até dá legitimidade a alguns para se autoatribuírem prémios de gestão, moralmente discutíveis, mesmo quando as empresas que gerem dão prejuízos que, diz-se, são cobertos com dinheiro do Estado. E parece transportar em si qualquer coisa de doloroso… A punição pelo Paraíso perdido… Como o feminino trabalho de parto… Ou o sofrido “tripalium” latino. Pensando nos gestores atrás referidos, se a dimensão da dor for proporcional aos montantes que auferem, grande será por certo o seu sofrimento. Magoado ganha-pão, diriam as gentes rurais da minha infância, tantas condenadas a “trabalhar e morrer de fome”! Como os atuais 11% de trabalhadores, (recente estudo da Fundação Francisco Manuel dos Santos) com trabalho estável, mas auferindo salários muito baixos, em regra salário mínimo – o clássico factor de competitividade da lógica do mercado, de tantas escolhas políticas – que não lhes permitem ter o que à luz da modernidade se considera uma vida digna, sobrevivendo, eles e suas famílias, abaixo do limiar de pobreza. Donde provêm as taxas de pobreza infantil e o seu leque de maleitas associadas – insucesso, abandono precoce da escola, etc. Sem contar com os imensos precários, os desempregados, os desistentes, os excluídos - para quem os conceitos de cidadania, trabalho digno e as mediáticas proclamações à volta do fátuo Pilar Social Europeu das Declarações de Gotemburgo ou, mais recente, do Porto, pouco dizem. Parece difícil erradicar a herança de empobrecimento do universo dos dois milhões, essa cifra social trágica a que o nosso país parece condenado, (serão 70 milhões à escala europeia) e que a democracia da UE não tem conseguido reduzir. Ou talvez não se queira. A pobreza é uma forma de controlar os povos…

Avivada pela emergência sanitária da situação pandémica, é a realidade das populações migrantes que trabalham em grandes explorações agrícolas, das condições desumanas em que vivem, dos salários miseráveis que auferem, e de como são joguetes nas mãos de empresas de trabalho temporário, talvez fachadas de infame tráfico humano, ou a versão moderna dos negreiros da nossa vergonha histórica. A saga da emigração / imigração que como povo conhecemos muito bem – a sombra do “Bidonville” francês ou das escravizadas Demeraras habita a nossa memória – reescreve-se agora com outros povos explorados por engajadores, patrões e populações locais, a moeda de troca da competitividade empresarial, do negócio da nova agricultura predadora do ambiente, e do sucesso económico… À memória vêm imagens de um filme francês, dos anos 70, à volta de uma clínica de rejuvenescimento para celulites decadentes e contas bancárias chorudas, um tratamento misterioso, e trabalhadores portugueses ilegais de que a personagem Manuel, simpático e jovem empregado de mesa dos tonificantes sumos milagrosos à beira da repousante piscina, fará o enquadramento, alvo do interesse de uma cliente curiosa sobre a razão da constante rodagem de portugueses jovens e saudáveis que desapareciam misteriosamente… Ficou-se a saber a origem dos tonificantes sumos, mas ninguém foi punido, o negócio continuou, porque como dizia o investigador policial, “de imigrantes (de preferência ilegais e escravizados?) precisaremos sempre”… E, com mais ou menos suor, há que ganhar o pão…