Crónicas

Os sábados

Nos domingos mais calmos, víamos os passatempos no jornal e, à tardinha, dava o braço à minha mãe no regresso a casa

Eu levantava-me cedo, antes mesmo da vizinhança ligar o gira-discos ou sintonizar no Posto Emissor, para meter-me no autocarro que, aos sábados, levava os lojistas da baixa, adolescentes infelizes e sonolentos e o povo que ia às compras ao mercado. E descia ali na Cabouqueira para as aulas nos Ilhéus, lembro-me que tinha Francês e Religião e Moral e que ninguém prestava atenção aos professores. Entre nós, os alunos, todos comentavam o episódio do “É Incrível”, um programa americano sobre prodígios e fenómenos paranormais que a RTP-Madeira passava às sextas-feiras.

O que me parecia muito mais empolgante do que aprender francês ou outra matéria qualquer que se pudesse dar na escola depois de uma semana a viajar em ‘horários’ cheios e quando a roupa, a que não era muito estranha, estava toda para lavar. O horário ficava completo com aquelas aulas, mas, na verdade, nós discutíamos a chuva de sapos numa cidade qualquer da América, o tipo que escapara de morrer num desastre de avião por ter tido um sonho e histórias de pessoas que diziam ser a reencarnação de alguém famoso.

Os verbos franceses e as questões da moral não passavam de um ruído que tínhamos de ouvir até o toque de saída. E, quando tocava, era um alívio, tínhamos o domingo para esquecer aquele casarão antigo, com salas de tectos trabalhados, árvores imponentes, uma fonte com peixes no meio do jardim e um campo de futebol onde se jogava à bola e ao “lá vai obra”. Lembro-me que, aos 13 anos, no pior ano da adolescência, da escola gostava mesmo dos cachorros quentes a nadar em manteiga e das aulas de História. O resto era andar depressa para a Avenida do Mar, arranjar lugar no primeiro autocarro e sair na paragem antes da curva.

Lembro-me que, quando descia do autocarro atrás de alguém carregado de sacos do mercado, a vizinhança estava em rebuliço de limpezas, havia roupa estendida, cobertores a apanhar sol nas janelas e música a tocar alto num gira-discos. Os homens lavavam os carros no caminho e ouviam as notícias na telefonia. A minha mãe esperava-me no alto dos degraus da entrada com uma lista de tarefas para fazer: varrer o quintal, arrumar o quarto, lavar a cozinha e a casa de banho. E não era bom varrer a alcatifa – a grande moda dos anos 80 –, afastar todos os vasos de flores que formavam filas pelo quintal e esfregar os fundos das panelas.

Eu demorava horas e horas e ouvia a minha mãe lamentar-se, não lhe tinha saído uma filha diligente, mas a miúda desajeitada e distraída, que parecia estar com a cabeça noutro lugar, que se fazia de surda e era mais um peso do que uma ajuda. E, depois mais ou menos desesperada a meio daquela casa sempre tão caótica, concluía: as outras filhas não são assim. Por mim, até podia ser, eu só queria chegar ao domingo à tarde para ir ver passar carros no caminho a casa da minha tia Alice e mexer nos perfumes e batôns da minha prima Ana.

Ou ficar a ver os filmes de antigos da sessão da tarde com o meu irmão e comer os chocolates que a minha tia Teresa tinha sempre dentro da gaveta do armário. Às vezes também víamos documentários da II Guerra e os desenhados animados antes de irmos lanchar e o meu irmão desassossegar as tias com as teorias de que era ateu e que Deus, na verdade, não existia. Nos domingos mais calmos, víamos os passatempos no jornal e, à tardinha, dava o braço à minha mãe no regresso a casa.