Crónicas

Mas a Páscoa é quando?

Lembro-me de subir o beco até a igreja e de me cruzar com mulheres vestidas de preto, como se estivessem de luto e de as ver chorar

Eu cresci numa família que seguia à risca o calendário religioso, mais por tradição do que por fé. A fé tinha um caráter profundo e, disso, a minha mãe não gostava de falar, mas entusiasmava-se com o que era costume fazer-se. E, todos os anos, na quarta-feira antes da Páscoa vinha dos bordados com uns sacos de amêndoas e de torrões de açúcar, que tinham de durar até ao domingo. Às vezes escondia dentro do armário da sala de jantar atrás das garrafas de uísque e licor, aquelas reservadas apenas às visitas.

Lembro-me que não se comia carne e também me lembro de a ver no quintal a tratar do jardim onde as flores ganhavam exuberância por alturas da Semana Santa. E sei que discutimos muitas vezes quando, já mais para o fim adolescência, troquei as cerimónias na igreja pela praia. Era tão importante chegar à escola com aquele bronzeado de Primavera e comentar, no intervalo entre a aula de Filosofia e a aula de Portugês, que a água estava tão fria no Lido.

A minha mãe e eu acabámos por nos reconciliar, já nos tempos da faculdade, quando vinha de férias por 15 dias e as saudades eram tão grandes que ficaram perdoadas todas as falhas na igreja. E se mudara de interesses, não foi certamente por falta de empenho da minha mãe que me mandou à catequese, garantiu-me a comunhão e o crisma e ainda me educou nos rituais da fé católica.

E, durante anos, acompanhei as tias, quando iam a Via Sacra e às procissões. Não esqueço o espanto quando vi passar o Enterro do Senhor no crepúsculo de uma Sexta-Feira Santa e como me impressionou a música e aqueles santos retorcidos pela dor que desfilaram por entre duas filas de pessoas, de caras fechadas e tristes. E era estranho. A rádio passava música clássica. A telenovela, os filmes e tudo o que tinha interesse desaparecia da programação da televisão.

Lembro-me de subir o beco até a igreja e de me cruzar com mulheres vestidas de preto, como se estivessem de luto e de as ver chorar, enquanto no altar se narrava a paixão de Cristo. A traição de Judas, Pedro a negar três vezes antes do galo cantar e o terror do calvário, aquele suplício de um homem condenado à tortura e à morte. A história era contada com todos os detalhes a quem ali estava, velhos, mulheres, os jovens do coro e eu que, não devia ter mais de 12 ou 13 anos.

E era terrível, mas a vida no Laranjal não era simples, nem fácil e todos sabíamos que, depois daquele sacrifício, havia a ressurreição, a igreja enchia-se de luz no sabado de Aleluia e podíamos aproveitar os primeiros dias de calor e sol, comer um bom almoço no domingo de Páscoa e as amêndoas. E isto era a Páscoa, uma data que, este ano, a meio desta pandemia, nem sei bem quando é.