Crónicas

O triunfo dos limpos

Uma sociedade que adjudica os direitos individuais por categorias é então uma sociedade perigosa

É oficial. Já começou em Israel, e na Suécia e Dinamarca também. A Comissão Europeia não descarta a ideia. Começa a ser provável que neste Verão só se viaje assim: com “passaporte sanitário”, na prática o boletim de vacinas contra Covid-19.

Falta pouco para que em Portugal se peça o mesmo. Os ingleses estão vacinados em força. Só eles já davam um alentozinho aos hotéis, e ouvem-se por aí uns zunzuns de reservas. Presumo que na Madeira também.

Sucede que o passaporte sanitário é um desatino estratégico e um flagelo ético, que seguramente sacrifica a civilização para duvidosamente salvar um Verão.

Em primeiro lugar, porque estar vacinado não é um mérito. Não depende da vontade de cada um, mas da disponibilidade das vacinas, e de quem define os critérios de acesso a um produto escasso. O Estado vacina para prevenir casos graves e cortar cadeias de contágio. Nada disto se confunde com a atribuição de um direito a circular.

Em segundo lugar, porque o passaporte sanitário assenta em premissas não demonstradas. Sabe-se que a vacina protege o vacinado. É eficaz para produzir anticorpos e prevenir casos graves, e os dados preliminares dos países com maiores taxas de vacinação são animadores. Mas ainda não se provou que impede a transmissão do vírus. Os vacinados podem transportar assintomaticamente o vírus. O que significa que abrir as fronteiras a estes passaportes pode expor populações desprotegidas à doença dos viajantes inoculados, de resto mais propensos a comportamentos de risco.

Em terceiro lugar, é um incentivo perverso. À falsificação de passaportes, mas também à aquisição de vacinas para fins recreativos, ou à criação de uma economia paralela ou perpendicular de “vacinas para viajar”, movida a leilões de sobras ou a critérios ainda mais esconsos. Um risco que, a verificar-se, mais atrasaria vacinação de países pobres e remediados, favorecendo a mutação do vírus e protelando a almejada imunidade de grupo global.

Finalmente, o passaporte é um convite para outras discriminações do mesmo timbre. A discoteca dos vacinados, o cinema dos imunoglobulinas, o cruzeiro e o resort do passaporte, mais dividindo e discriminando entre ricos e pobres, jovens e velhos, políticos e cidadãos, grupos prioritários e grupos subsidiários, categorias criminosamente alheias ao facto de a pessoa estar efectivamente infectada, e assim representar um risco de saúde pública.

Compreendem-se os anseios de quem passou um ano a seco. Mas questão é como queremos passar os anos seguintes.

Sem juízos de proporcionalidade próprios de uma sociedade de risco - e não de uma sociedade absoluta ou pura - caminhamos para uma estratificação entre castas imunes e não-imunes, entre os afluentes que viajam para gastar e consumir, e são limpos, e os indigentes que se deslocam por precisar e para acudir, e são sujos.

Quando vivem no medo, as sociedades regridem, ou aproximam-se do Estado de Natureza em que são todas iguais. Na natureza, vencedores e vencidos, fortes e fracos, saudáveis e doentes, asseados e imundos são a expressão de uma ordem que se julga também ser a moral. A confusão entre natureza e moralidade é a morte do Direito, que morrendo nos torna insensíveis às injustiças dos outros, e comovidos e movidos apenas pela nossa própria tragédia.

Uma sociedade que adjudica os direitos individuais por categorias é então uma sociedade perigosa, porque atribui ao Estado o direito a decidir quem tem, e quem não tem, direitos que deviam ser inalienáveis e independentes dele. Tivemos um cheirinho desse caminho com os desvios ao plano nacional de vacinação, e tê-lo-emos ainda mais agora, pela mão do interesse público em reduzir os gastos com testes (um meio mais proporcional e mais justo), por via da pressão comercial para deixar viajar “quem pode” viajar, para sair à noite “quem pode” sair à noite, para ir a concertos “quem pode” ir a concertos, tudo acentuado pelos abismos da tecnologia, pelas presumíveis fraudes e enganos, os mecanismos, truques e esquemas que cavam desigualdades e favorecem quem a gente sabe precisamente que vão favorecer.

Há quem identifique nestes desmandos uma oportunidade de afirmar domínio ou estatuto. Outros confiam no Estado para distribuir tais trunfos, sabendo no fundo quem lhes guarda as costas.

Mas estas segregações já se viram antes, assim como se viu a rapidez com que a tragédia dos outros se converte na nossa. Recordando, aprende-se que o desprezo pela democracia e pelos direitos humanos não se anuncia, não é gratuito, nem violento ou irrazoável. É banal, insidioso, discreto, tácito. Dirige-se a gente de pouca importância, que não “risca”, e começa, relativizando, em faróis da civilização e da indústria. Costuma ser bom para o negócio, e até para o interesse nacional. Tem pretexto e tem desculpa. Não é uma comporta que abre só uma vez, é uma racha irremediável no dique.

O passaporte sanitário evoca tempos de má memória, que hoje infelizmente se trasvestem de tempos de memória nenhuma. Sugere-me o início de algo. Talvez a de uma marca digital, partilhada e indelével de um indivíduo, das suas doenças e pecados, para consulta pública nos postos de fronteira. A tentação de uma circulação retalhada, limitada pelos crimes, riscos e contágios do passado. Talvez uma classificação individual, como no crédito, reservando-se os negócios e regiões à admissão como se o Mundo fora uma grande porta de discoteca. Pela calada, o enterro de Schengen, o fracasso da confiança, a dissolução definitiva da tensão entre liberdade e segurança que ainda e corajosamente caracteriza o Ocidente.

Gostava de o evitar. Certas coisas deixam-se por escrito: se é para haver triunfo dos limpos, prefiro ser porco a vida inteira.

P.S. A TAP tentou cobrar € 1.800 por cabeça para um voo de repatriamento do Brasil, realizado ‘por razões humanitárias’ (a expressão é do Ministro dos Negócios Estrangeiros). Os passageiros indignaram-se, tiveram cobertura no telejornal. Como se atrevem a explorar quem não tem alternativa? Atrevem-se há anos, com os madeirenses no Natal e no Ano Novo, nos voos por quilómetro mais caros do Mundo. O barulho surtiu efeito. A TAP alegou um ‘mal-entendido’, e vai descer os preços. Perdeu-se uma oportunidade. Além de reconhecer que ‘entenderam mal’, podiam ter entendido ‘o’ mal. E dar-nos uma razão para os salvar.