Crónicas

O meu Ming de olhos tortos

É um gato, dizem que têm sete vidas, eu queria muito que tivesse e que o dito fosse uma verdade científica

Aqui estamos, o Ming e eu, de sofá, ele dorme e eu escrevo e tem sido assim nos últimos 14 anos. Nunca me falhou, ele que não passa cartão e, se for o caso, rosna, morde e arranha. Ou desaparece e volta depois, quase a medo, naquele jeito cauteloso de gato, as patinhas de lã que não quebram o silêncio. Em guarda, assustado, faz-se invisível; feliz é ruidoso, uma sombra que segue os meus passos e encontra lugar no braço do sofá ou aos meus pés. Se me levanto, acorda também, faz-me companhia enquanto lavo os dentes, assim como se fosse uma estátua viva.

É difícil e carinhoso, tem amuos que duram dias e custa-lhe a perdoar, mas escolheu-me naquele dia, quando o vi na loja de animais. Era pequeno, torto dos olhos e estranho, disseram-me que ia ficar lindo em grande, tinha raça. Não foi por isso que o trouxe, foi pelo contrário, por ser estranho e feio, pareceu-me desamparado. E quando se soltou em casa, arqueou as costas e fez frente à gata, que era cinco vezes maior. Achei graça, era novo, desvairado e trepava pelas cortinas.

E nunca se fez o tal gato bonito, cresceu esquisito e ficou tímido, esconde-se das visitas no armário das toalhas ou debaixo do edredão, não há maneira de o meter na caixa para ir ao veterinário e há anos que dei como perdidos os sofás, não encontrei uma maneira de cortar as unhas sem fazer feridos. O meu Ming, com este nome de imperador, é tudo isto e a outra parte: a do gato que se enrosca nas minhas pernas, tenha o dia corrido bem ou mal.

E foi assim quando mudei emprego, na vez em que tive uma otite, quando as minhas tias morreram e o meu pai se foi. Velou a tristeza e as insónias das minhas perdas e as alegrias e as conquistas, também as tive, e eu não quis ver que em 14 anos de vida de gato cabem 80 anos humanos. A natureza fez caminho pelo siamês, levou-lhe músculo e ânimo. O veterinário tentou não assustar, que o caso é grave não há maneira de esconder, mas eu tenho uma esperança que nunca me larga, pode o meu Ming ter ainda uma vida de reserva.

É um gato, dizem que têm sete vidas, eu queria muito que tivesse e que o dito fosse uma verdade científica, custa-me pensar num futuro em que não o terei estendido no tapete da sala a mostrar-me a barriga, nem a afiar as unhas nas minhas bolsas ou a virar o focinho à comida, com ar de lorde entediado. E sei que vou chorar, que me vai partir o coração, que não sei ser de outra maneira, nem vai ajudar se alguém me disser que é apenas um gato. Para mim será sempre o gatinho estranho, de olhos tortos e desamparado da loja de animais que me escolheu.