Crónicas

O nosso fogo

O espectáculo deste ano foi mesmo o melhor de todos. Não havia turistas, recordes, cruzeiros, agendas ou cartazes. O fogo fez-se pelos madeirenses, para os madeirenses

1. Como sempre no fim do ano, mas neste mais que nunca, correu uma onda de indignação com a despesa de um milhão e picos no fogo do Funchal. O povo a passar fome, berram, e para isto há dinheiro.

O problema desta sobranceria moral é apanhar toda a gente que se dedica a alguma coisa para além de matar a fome ao povo. O que inclui boa parte, e até parte boa, da Humanidade. O povo a morrer à fome, e eles a reconstruírem Notre Dame. O povo a morrer à fome, e o Picasso a pintar a Guernica. O povo a morrer à fome, e eles a descobrirem a penicilina. O povo a morrer à fome, e eles a aterrarem na Lua. O povo a morrer à fome, e eles a comer sobremesa. O povo a morrer à fome, e eles a lamentar o povo a morrer à fome no Facebook. É infantil, é preguiçoso, e é vulgar. São o povo a morrer de fome espiritual.

Esta crítica não vê, nem vislumbra, o significado simbólico e intangível do fogo, que é de transformação e permanência, de esperança e catarse, de brilho e contraste. Começa-se de novo, mas como no ano passado, numa baía rica, luminosa e quente, que improvavelmente – e como a própria vida – protesta contra o breu da noite e do mar. Na noite de São Silvestre, antes do fogo, vemo-nos uns aos outros e vemo-nos a nós próprios, oleando a convicção, aí fundada e aí plausível, da excepcionalidade desta terra e da sua gente.

O espectáculo deste ano foi mesmo o melhor de todos. Não havia turistas, recordes, cruzeiros, agendas ou cartazes. O fogo fez-se pelos madeirenses, para os madeirenses, sem utilitarismo ou ulterior motivo, como é próprio da beleza e da generosidade. Fez-se para esconjurar uma derrota, o tempo roubado, o tempo perdido, o tempo desconsolado do ano passado. Na falta das buzinas dos grandes navios, correu o murmúrio e o atrevimento de um festejo. Começámos de novo, e já não começámos do zero.

Os cínicos sabem o preço de tudo, mas não sabem o valor de nada. O fogo mata a fome a muita gente. E sai barato.

2. No entanto, há contrastes que pedem atenção, pudor e registo.

Em hotéis e casas por todo o Funchal, as pessoas reuniram-se para celebrar o Ano Novo. Estiveram de máscara, mas nem sempre. Estiveram distantes, mas nem sempre. Estiveram na rua, mas nem sempre. Foram poucos, mas nem sempre. Ventilaram-se, mas depende. Alguém lhes disse como proceder, mas quase nunca.

Entretanto, na Praça do Povo, no Pico dos Barcelos e no Miradouro das Neves, outras famílias e amigos reuniram-se para fazer o mesmo. Separados por quadrados, vigiados, literalmente encurralados. Jantados, de máscara e ao ar livre, mas pouco importaria, e pouco importou.

A gente percebe. O domínio público é tutelado pela Administração Pública, e a Administração não pode facilitar, não pode dar azo, não pode quebrar, não pode abster-se e muito menos contradizer-se.

Mas o episódio é sintomático e revelador. A liberdade, antes uma garantia de não intervenção do Estado, é hoje algo que se compra ou trafica. A opção pelo fogo é pela celebração da normalidade possível, mas uma normalidade adjudicada por castas, num rito essencialmente coreográfico. Não me venham com a solução ser semelhante à de concertos, comícios, ou celebrações religiosas, onde vai quem quer e em igualdade absoluta entre quem vai.

Sabemos quem ia para a rua, sabemos quem ia para os hotéis. Sabemos quem era de confiança, sabemos em quem não se podia confiar. Sabemos que quem apoiou não iria para o quadrado, não sabemos se quem iria para o quadrado apoiou. Não perguntámos.

Ao que parece, foram para outro lado. Se era essa a ideia, parabéns. Mas isso não apaga o desenho de uma classe social no passeio da cidade. Em dia de fogo, a contradição era inevitável. Esta também existe. É uma marca, é uma escolha, e tem um nome: indignidade.

Por isso me animou vê-la sozinha, vigiada, em balsas à deriva, passando o ano no quadrado que o orgulho esvaziou.

3. O quadrado é pesado, mas não é extraordinário. 2020, o ano do grande reset, o grande “reinício”, foi um ano de conquistas da ciência, da técnica e da ética, de abnegação pelos mais fracos e liderança corajosa. Mas foi também o ano em que gente de boa-fé, pelos melhores dos motivos, entregou a sua liberdade e agência sem tino nem freio, o ano em que o medo se confortou em falsos profetas, fake news, e no braço forte do autoritarismo, e em que o Estado-Nação e seus desdobramentos se valeram de um arbítrio e impunidade sem paralelo, com que agora se abalançam para perigosa e antiquadamente torrar os estímulos europeus.

Não ter filosofia é uma filosofia. Passámos um ano sem ela, fingindo que nada era pior do que contrair o vírus ou tê-lo mais solto, julgando opções políticas por critérios científicos, buscando a pureza moral a pretexto da pureza sanitária. É muito natural que 2020 tenha sido o ano da hipocrisia. É esse o vício que se explora, assinala e deplora quando o queremos enxotar de nós mesmos.

Nestes sonos da razão, 2020 foi um repetente do século XX. Estado e Sociedade alinharam-se no combate a um inimigo abstracto, absoluto e total, e de caminho tornaram-se mais parecidos com ele. Revisão da matéria dada: o mal não é maldade, não é caso pensado, não é deliberação. O mal é alheamento, o mal é descuido, o mal é banalíssimo. O mal é a vidinha deixada sua sorte, degradando e apodrecendo como tudo de que não se cuida nem se gosta. Há vida além da vidinha de 2020, como há vida além do vírus. Mas é preciso estimá-la, é preciso ir buscá-la, e é preciso querê-la e querer ir por ela. O fogo também é isso. Cada um tem o seu para dar.

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