Artigos

Espelhos e realidade

O Mundo em que vivemos é como uma casa de espelhos onde só um reflete a realidade e todos os outros as realidades que cada ser humana deseja ser a sua.

Uma tarde, uma viagem no metropolitano.

Um sessentão, ainda bem apessoado, com traços de quem já foi (ou, quem sabe, ainda é) um pedaço de mau caminho entra na carruagem cheia àquela hora da tarde. Os bancos estão todos ocupados e ele agarra um daqueles penduricalhos que servem para contrabalançar as curvas e paragens a que o comboio é sujeito. Na estação seguinte saem mais pessoas do que entram, deixando algum espaço livre em pé, com os bancos a continuarem ocupados. Num banco estava uma mulher, trintas, por aí, que tentou olhar para o sessentão distraído com os seus pensamentos. Ele, sentindo-se mirado, reparou então na mulher que lhe sorriu com um ligeiro abano de cabeça, ao qual ele correspondeu com um outro sorriso. A mulher fez um outro abanar de cabeça, tentando transmitir que lhe queria dizer algo. Ele sentiu o ego a elevar. Afinal ainda havia quem reparasse nele e lhe sorrisse amavelmente, no metro, é certo, fugazmente como o são estes encontros e trocas de olhares um pouco cúmplices com que às vezes brindamos e somos brindados por quem partilha o mesmo espaço num espaço de tempo que bem sabemos acabar mesmo ali ao virar da esquina. Mas o ego é, também, fortalecido assim, de pequenos nadas. Ela fez novo sinal com um discreto abanar de cabeça e ele ainda olhou em volta para ver se haveria mais alguém a quem ela pudesse estar a fazer um pouco de charme, mas não, não havia mais ninguém ali à volta, e o ego inchou. Sorriu de volta, já imaginando (só imaginando) uma aventura quando viu que ela, com o mais simpático dos sorrisos se levantou e dirigiu-se-lhe:

- Desculpe, mas não se quer sentar no meu lugar?

Amarelecendo o sorriso e com o ego muito em estado lastimoso lá conseguiu balbuciar: “não, não, muito obrigado, estou bem assim, muito obrigado pela sua amabilidade” e lá seguiram viagem sem mais trocas fugazes de olhares eventualmente antevendo a aventura que afinal nunca veria a luz do dia (ou da noite, sabe-se lá por onde nos leva a imaginação).

Afinal, ele que se olhava (mas pouco se via) todos os dias ao espelho, com o seu cabelo já branco (ok, mas com um toque de classe) e ainda com uma forma física em que as flacidezes ainda não eram predominantes (para lá caminham), ainda se considerando na categoria de jovem, jovem ancião, mas jovem caramba, e vem uma mulher, jovem, ela sim, oferecer-lhe o lugar para se sentar no metropolitano, ora bolas para isto. Lembrou-se então de uma fotografia (ou mais) em que estava com um grupo de pessoas da mesma faixa etária e de ter pensado quem seria aquele velhote, bem-apessoado, mas velhote, que ali estava.

Na nossa casa de espelhos só um reflecte a realidade!

Todos os outros espelham um pouco daquilo que gostaríamos que fosse realidade tangível, ali ao sabor dos nossos sonhos e desejos.

Os espelhos da vida deixam-nos olhar com os olhos da imaginação tudo o que não queremos, tudo o que gostaríamos de não ver com os olhos da realidade. Aquele que olhamos todas as manhãs dá-nos a imagem com que gostaríamos de nos apresentar sempre e é com essa imagem que saímos para o dia-a-dia, para o corre-corre, para as viagens de metro que temos de fazer para que haja um dia atrás do outro com uma noite a meio. Mas a realidade com que a bidimensionalidade do espelho nos brinda não é normalmente a mesma que levamos para sermos olhados e vistos com quem nos cruzamos. Esses, vêm-nos a três dimensões, tal como somos, tal como a realidade se lhes é apresentada. E não vem qualquer mal ao mundo só por isso. O orgulho não deve ser ferido por sermos quem somos, não, o orgulho deve ser alimentado por sermos quem somos, com o espelho da realidade a sobrepor a sua verdade sobre os espelhos da imaginação.

O espelho da vida deve ser olhado, tem de ser visto pela realidade que transmite, pela verdade que diz ser aquilo que reflete. Assim deveria ser toda a actividade humana, olhando e vendo a realidade tal como ela é e não através da imagem simpática que queremos possa ser.

Nós, habitantes desta casa de espelhos que é o nosso mundo, somos muitas vezes levados a olhar o espelho da vida através de outros espelhos, daqueles que refletem imagens distorcidas, imagens douradas de pílulas cinzentas, mas temos de contar que, no fim, o espelho da realidade beneficia com a diversão que podem trazer os espelhos da imaginação.

Hoje a realidade reflectida é: ficar em casa!

Fechar Menu