Crónicas

O bom, o mau e o culpado

É certo que não fizemos tudo bem, mas fizemos tudo o que podíamos. E isso também conta

Marisa Matias veio à Madeira, mas não passou do Funchal. O desvio que fez, a caminho do aeroporto, não conta para o curto périplo. Mas a voltinha da candidata às ilhas adjacentes escondia um problema. Marisa faz parte da esquerda que vê nas autonomias regionais um atentado à soberania nacional à espera de acontecer. Então, a candidata ensaiou um sermão sobre os perigos da autonomia para o poder local e alvitrou a canonização do inquilino do Palácio. Nas suas palavras, o Representante da República não existe por acaso. Claro que não, Marisa! O que também não é obra do acaso, é que nos 20 minutos de conversa na Câmara do Funchal, Marisa deu mais à letra do que a vereadora do Bloco de Esquerda nos seus áridos 3 meses de mandato. Afinal, nem tudo podia ser mau.

O bom: Madeira, destino mais seguro da Europa

Esta semana trouxe-nos a notícia de que a Madeira foi distinguida como o destino mais seguro da Europa para visitar em 2021. Numa altura em que a retoma do turismo dependerá, essencialmente, da confiança que os turistas venham a ter na segurança do destino, este reconhecimento é vital. Mas se o prémio é alavanca para o futuro, também deveria servir de reflexão sobre as decisões que tomámos. Na altura, polémicas - como a limitação do número de passageiros nos aviões para a Madeira, até temerárias - como a obrigação de testagem a todos os turistas que cá chegavam. Hoje, muitas dessas medidas são reproduzidas noutras paragens. Haverá maior reconhecimento que esse? É certo que não fizemos tudo bem, mas fizemos tudo o que podíamos. E isso também conta. É um erro fazer do sucesso das nossas medidas de saúde pública uma competição com outras regiões ou países. Somos tão bons, quanto a próxima divulgação de dados da pandemia permite, e essa efemeridade recomenda humildade, não altivez. Da mesma forma que, porventura, nunca fomos a terra mais segura do mundo, hoje, não somos a região onde o vírus vagueia descontrolado. É por isso que nos devemos focar nas medidas de controlo da pandemia e, não apenas, nos resultados. Com duas certezas. A primeira, não são as medidas de contenção que deprimem a economia, são as pandemias. É o que nos diz um estudo da Reserva Federal, com o mesmo título, sobre o impacto da gripe espanhola de 1918 em várias cidades dos Estados Unidos. A segunda, o sucesso das medidas depende da sua divulgação e explicação aos cidadãos. Para isso, a comunicação social é decisiva, tal como será o regresso das conferências de imprensa semanais.

O mau: A suspensão dos cuidados de saúde

A ministra da Saúde ordenou aos hospitais o adiamento de cirurgias prioritárias, incluindo as oncológicas. É a primeira vez que se adiam, expressamente, cuidados prioritários. Não critico a decisão, porque não lhe conheço os pressupostos, mas reconheço o dilema ético de quem a tomou. É óbvio que o Serviço Nacional de Saúde está a rebentar pelas costuras. Ainda mais evidente, é a sua incapacidade para, sozinho, fazer face ao que está para vir e ao que ficou para trás. Essa necessidade pública – nossa e do SNS – torna inexplicável o ambiente de hostilidade que o Governo criou em torno dos hospitais privados. O pedido de colaboração, sob a ameaça da foice afiada da requisição civil e do martelo incerto da justa compensação, lembra a temperatura de verões que julgávamos definitivamente resfriados. Um serviço público de saúde que adia cuidados prioritários é um serviço que, só por si, já não serve aos cidadãos. O que não se percebe é como, entre vagas do vírus, não se criaram planos para que o setor privado pudesse complementar o serviço público nas suas falhas. Se a capacidade existe nos hospitais privados, o que impede um doente de ali receber os cuidados que um hospital público não lhe garante? Talvez a cegueira ideológica, um plano oculto de destruição do SNS ou a simples aversão à avaliação das políticas de saúde. É o mesmo desvario que levou ao fim da parceria com privados que geria o Hospital de Vila Franca de Xira ou o Hospital de Braga. As duas gestões elogiadas pelo Tribunal de Contas, mas terminadas por quem vê no setor privado um inimigo figadal do setor público. O estado de necessidade a que nos trouxe o vírus poderia ser o mote para um debate sobre a cooperação entre todos os setores da saúde. Está visto que não vai ser. A culpa continuará a ser da direita, dos privados e, é claro, do Passos.

O culpado: O medo do vírus

Enquanto somos submergidos pela terceira vaga do vírus, esquecemo-nos em quem a pandemia nos tornou. Contadores do número de pessoas em mesas, esplanadas e festas. Fiscais da utilização, anatomicamente correta, de máscaras. Vigias da pontualidade britânica no recolhimento obrigatório. Guardas pretorianos do acesso às montanhas salpicadas com neve. Há, em cada um de nós, um projeto de inspetor de saúde pública. Zeloso do cumprimento alheio das regras, mas brando em causa própria. Abraçámos a avó, recebemos os tios em casa, sentámo-nos à mesa com a família e, ali, esquecemo-nos do vírus. Naquele instante, o inspetor zeloso dá lugar ao ser humano. Não somos culpados por isso. Nem podemos culpar quem, no Natal, não ficou sozinho, fechado, em casa. A vida tem de encontrar espaço na saúde pública. Somos culpados de ter medo, de ser feitos de carne e não de ferro. Haverá, certamente, sentenças piores que esta.

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