Codiv-19, agonizantes e finados

Vem aí os dias de todos os santos e de fiéis defuntos em tempo de alta pandemia. O tabu da morte levou ao desuso das palavras agonia e agonizantes. A realidade nem por isso mudou. Continua a haver mortes, no plural, e esta pandemia está a lembrá-lo todos os dias até à saturação. As pessoas que morrem são números, os funerais sem rituais de luto dos parentes; tudo estatísticas sem rostos. Pessoas-números sem corpo e alma, diariamente sob máscaras de vivos e de mortos. Tantos infetados, curados, falecidos, internados, neste e naquele país e continente. A pós modernidade e transhumanismo, se pudessem, como Gilgamesh do mito, já teriam acabado com a morte e declarado os homens a-mortais. Os cristãos aceitam com humildade que não escapamos à primeira morte e só pela morte de Cristo podemos escapar à segunda e entrar na vida eterna dos ressuscitados (Ap. 2,11). Há homens de vidas mais livres que outros; mais iguais na primeira morte; e mais irmãos na fraternidade que outros, como a carta de Francisco Fratelli Tutti vem lembrar. Os dias litúrgicos (1 e 2 nov.) vêm apelar, para todos serem irmãos-filhos de Deus nesta e na vida futura eterna. Como dizia, falar de agonizantes, rezar pelos agonizantes, assistir agonizantes são expressões quase caídas em desuso. Fica-se a falar de cuidados paliativos para cerca de 20% dos doentes terminais e em agonia. Os sintomas de agonia resistem mesmo a técnicas de cura e esperam cuidados formais e informais de conforto, abertos para a vida do além com Deus Pai. A festa de todos os santos e a memória orante por todos os fiéis defuntos são um convite a repensar, ritualizar e celebrar a vida de cá, na liberdade, igualdade digna de seres à imagem e semelhança de Deus, e vida de irmãos em fraternidade. Em tempo de pandemia avassaladora, por todo o globo, vive-se em clima doloroso de agonias e mortes que nos lembram que “a vida não acaba mas se transforma”. Este tempo pode ser de oportunidade para os que creem como Nossa Senhora junto à cruz de seu Filho, a ouvir as suas últimas palavras. Tempo que convida a estar próximos dos agonizantes; a ouvir e dizer palavras de silêncio; convida os vivos a continuar unidos aos seus irmãos e a viver na fé e nas boas obras. Artistas antigos pintaram danças de igualdade na morte em monumentos e igrejas, lembrando o catecismo da fé cristã. Tivemos ocasião de contemplar a dança da morte de La Chaise Dieu, no centro da França, a de Mariakirch, em Berlim e uma terceira no castelo de Bled, Eslovénia. Podem chamar-lhe macabras, mas não eram de mais horror que muitos filmes e halloweens para “deleite” de tantos aficionados de ocos horrores. Eram danças de igualdade humana: reis, papas, nobres, bispos, beldades e pessoas simples convidadas para a dança de “passagem”. A morte era também tema de fé, e não tabú, nas capelas de ossos bem conhecidas e muito visitadas, Évora, Roma… O historiador Rui Carita não exclui que houvesse (haja) uma capela de ossos subterrânea no jardim da cerca do convento dos franciscanos do Funchal. As visitas aos cemitérios (alguns com muita arte, como o de Milão) são visitas de memória, e também de fé na vida eterna, de purificação no purgatório; e de comunhão dos santos na oração sem fronteiras. A realidade é amiga e não ajuda muito rodear a morte de tabus e fantasias. Quando me morreu um irmão a quem celebrei o funeral, uma sobrinha pergunta-me se devia deixar ir os filhos de 2, 3, 5 anos, não recordo bem. E se isso não faria mal às crianças. Andava nessa altura, como psicólogo, a visitar hospices e a fazer encontros com viúvas sobre o pré-luto, luto e novos projetos de vida. A minha resposta foi: mal, porquê? Mal será se ficarem com um vazio sobre o que aconteceu ao avô. Levaram flores para oferecer ao avô no caixão em quanto a mãe, na sua fé, lhes dizia que ele fora para o Céu. Fazer mal? A morte é realidade da vida. Talvez o covid-19, indiretamente, esteja a lembrar a realidade contra o tabu da morte que não serve o bem-estar e o bem-fazer das pessoas. Se todos, mesmo todos, são iguais no falecer, os santos que celebramos foram “felizes” (Mt 5 1-12) no fazerem o bem. E, canonizados ou não, convidam a aceitar com eles a mesma igualdade, cá e na glória eterna.

Aires Gameiro

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