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Crónicas

A sabedoria que nasce do caminho

A vida continua a oferecer pequenos amanheceres. São leves, quase desarmados, discretos como um sopro, mas chegam sempre

“Chegará o momento em que compreenderemos que sabedoria é amar tudo.”

Não lemos os livros pela capa, mas esta citação, inscrita na contracapa, ressoou diretamente no meu coração. Ela confirma: todas as mães são sábias.

Mãe que é mãe ama os filhos incondicionalmente, acima de qualquer limitação ou rótulo. A sabedoria, afinal, não é uma coleção de certezas, é uma prática diária de amor que insiste, que acompanha, que se curva sem quebrar.

Foi com essa frase a arder em fogo lento dentro de mim que mergulhei no último livro do Cardeal José Tolentino Mendonça, Para os caminhantes tudo é caminho, publicado pela Quetzal.

A três meses de completar 50 anos, posso afirmar com segurança: bem sei, querido Tolentino.

“É saudar os dias sem esquecer a importância das horas; contemplar as grandes torrentes sem deixar de agradecer cada gota de orvalho; estimar o pão sem, no entanto, esquecer o sabor das migalhas. Chegará a ocasião de compreender que o importante não é só contar a viagem, mas testemunhar também o contributo dos passos…”

Não precisei avançar muito para perceber que ser mãe de crianças e jovens com deficiência, neurodivergentes, é, na verdade, uma das expressões mais puras dessa metáfora. Caminha-se todos os dias, caminha-se sem mapa, caminha-se com a coragem possível. E, apesar de tudo, caminha-se com um amor que ilumina até os trechos mais sombrios.

Tolentino descreve a luz que caminha ao nosso lado com passos pequenos, passos de algodão. Reconheci-me nessa imagem: a maternidade atípica ensina-nos a escutar esses passos quase inaudíveis e a perceber que, mesmo quando tudo parece suspenso, algo começa para nós e para eles.

À medida que fui lendo, encontrei outra imagem que me ficou a pulsar: a de que rezar é também abraçar. Um abraço são dois corpos inclinados na vulnerabilidade, a criar hospitalidade um para o outro. A maternidade atípica é isso diariamente, braços que se abrem, que acolhem, que sustentam, que ajustam o centro de gravidade para que o outro encontre equilíbrio. Há algo de profundamente sagrado nesse gesto contínuo. E, logo depois, Tolentino escreve sobre a família como reserva do afeto. Li esse trecho e reconheci-me. Porque a família, para quem tem filhos mais diferentes dos demais, não é apenas o nosso lugar, é o refúgio, o laboratório, a trincheira, o estúdio onde embalamos a fragilidade e a vulnerabilidade: deles e nossa. É onde reencontramos o fio de sentido, mesmo quando o caminho se torna íngreme demais.

Tolentino fala da importância das horas, desse gesto humilde de agradecer cada gota de orvalho mesmo quando a vida nos obriga a enfrentar torrentes. A maternidade atípica exige justamente essa atenção radical ao detalhe, aos pequenos progressos que não aparecem nos relatórios mas transformam o tecido da vida. É saber reconhecer o sabor das migalhas quando o pão inteiro ainda não está ao alcance, não como resignação, mas como celebração do que é verdadeiro. Como quem contempla a manhã não pela sua força, mas pela promessa discreta que traz: essa luz tímida, mas suficiente, que nos restaura. Ser mãe atípica implica testemunhar cada etapa com uma presença que o mundo raramente vê. Não basta contar a viagem, é preciso honrar os passos. Os passos incertos, os passos demorados, os passos que ninguém aplaude, os passos que parecem retrocessos, os passos que, de repente, revelam um horizonte novo. Cada passo deles é uma forma de amanhecer: às vezes tímido, às vezes escondido, outras vezes tão pujante que nos enche de uma frescura que nem sabíamos que precisávamos. Há dias de conquista, em que a tal “frescura da fonte” nos sacia, e há dias de sede, em que tudo parece demasiado desafiante. Ambos pertencem ao caminho e ambos moldam esta sabedoria feita de ternura firme.

Tolentino lembra-nos também que a experiência humana ilumina tanto quanto ensurdece, que encontramos sentido nos encontros e, às vezes, também no vazio das expectativas. Qual mãe não conhece esse silêncio? Aquele momento em que o futuro se encolhe de incerteza e, ainda assim, continuamos. Continuamos porque o amor não se guia por garantias, guia-se pelo vínculo. Caminhamos porque há uma criança, uma jovem, que confia no nosso passo, mesmo quando nós próprias hesitamos. E é aqui que o livro toca mais fundo. Para o autor, o caminhante aprende a maravilhar-se mesmo quando o alforge está cheio e as mãos estão vazias. Senti essa imagem de forma visceral. A maternidade de um filho com dificuldades acrescenta-nos peso, responsabilidades, decisões, vigilâncias, batalhas silenciosas; outras, muito violentas: nas escolas, na justiça e até na tentativa de fazer entender o outro progenitor que não são precisas regras rígidas, é preciso amor, empatia e presença. Genuínas. Mas também nos deixa, tantas vezes, com as mãos vazias das respostas que gostaríamos de dar, das certezas que desejávamos ter, dos caminhos que queríamos desbravar por eles. É nessa tensão, entre o muito que carregamos e o pouco que controlamos, que se revela a tal sabedoria de amar tudo. Amar o que é fácil, amar o que desafia, amar o que dói, amar o que transforma. Amar, sobretudo, o que nos chama diariamente a sermos mães mais inteiras do que imaginávamos.

Fecho este livro com a sensação de que Tolentino escreveu para todos os caminhantes, mas, sem saber, escreveu também para nós, mães atípicas. Porque, sendo tudo caminho, também esta maternidade o é, um caminho feito de horas que nos moldam, passos que nos ensinam e um amor que, sendo incondicional, é profundamente sábio. Se o melhor legado que deixamos uns aos outros é um amanhecer, então a maternidade atípica é esse legado multiplicado: um espaço aberto para que o outro exista, mesmo com passos incertos. E talvez seja esta a verdade mais luminosa: a sabedoria não chega no futuro, nasce agora, no gesto simples de amar um filho tal como ele é. É nesse gesto que tudo começa, e é nele que tudo continua.