Larga maioria dos jornalistas em Portugal nunca teve formação em IA
A larga maioria dos jornalistas em Portugal nunca tiveram formação em inteligência artificial, revela o Livro Branco sobre Inteligência Artificial no Jornalismo, o primeiro estudo de âmbito nacional sobre esta matéria, que é hoje apresentado em Lisboa.
O Livro Branco sobre a Inteligência Artificial no Jornalismo é financiando pelo European Media and Information, sob a gestão da Fundação Calouste Gulbenkian e coordenado pela Nova FCSH.
De acordo com os dados, 83,8% dos jornalistas portugueses nunca receberam formação em inteligência artificial e quase dois terços (64%) afirmam que não existe qualquer código de conduta sobre IA nas suas redações.
Outro dos dados é que 64,4% acreditam que a IA "vai agravar a disseminação de desinformação" e 48% "antecipa impactos negativos na ética e deontologia profissional".
"Apenas 11,9% dos órgãos de comunicação social têm colaborações ativas com universidades ou centros de investigação", refere o Livro Branco, que conclui que "Portugal enfrenta um défice estrutural de preparação, que poderá comprometer a qualidade da informação, a proteção das audiências e a sustentabilidade das empresas jornalísticas, sobretudo num contexto marcado pela intensificação da desinformação e pela crescente utilização de conteúdos sintéticos".
O documento, que faz 10 recomendações estratégicas, pretende servir de base para a definição de políticas públicas e estratégias editoriais que garantam que a integração da IA nas redações decorre de forma ética, transparente e orientada para o interesse público.
"A publicação do Livro Branco sobre a IA no Jornalismo representa a importância de definição de políticas públicas suportadas por evidência, reflexão crítica e participação informada", afirma o coordenador Paulo Nuno Vicente.
Com este documento, "procuramos sistematizar os principais desafios e oportunidades que se abrem com a adoção de sistemas de IA nas organizações de media em Portugal, disponibilizando uma base sólida para o diálogo e a colaboração entre decisores políticos, agentes públicos e privados do setor e a sociedade civil", prossegue o responsável, citado em comunicado.
"Esperamos que este contributo sirva de referência para a construção de soluções sustentáveis, tecnicamente robustas e socialmente legítimas", acrescenta o coordenador do Livro Branco, referindo que este "foi concebido como uma ferramenta de orientação estratégica, apoiada em dados representativos da realidade nacional e no estado da arte do conhecimento internacional sobre o tema".
"Identificámos áreas críticas de intervenção e propomos um conjunto de recomendações, com especial enfoque na necessidade de cooperação interinstitucional e intersetorial, na inovação e na salvaguarda de direitos fundamentais. Trata-se de um ponto de partida para um processo que assume como princípio e fim a preservação de uma base de informação pública de qualidade, essencial à vitalidade das sociedades democráticas", remata Paulo Nuno Vicente.
Uso de IA nos media em Portugal é centrada na pesquisa e transcrição
O uso de inteligência artificial (IA) nos media em Portugal é maioritariamente operacional e não intensiva, revela o Livro Branco sobre IA no Jornalismo, que aponta que é centrada na pesquisa e recolha de informação e transcrição.
"A utilização de IA no jornalismo português é maioritariamente operacional e não intensiva, centrada em tarefas como pesquisa e recolha de informação (56,1%), tradução automática (41%) e transcrição (40%)", lê-se no Livro Branco, que faz 10 recomendações estratégicas.
O padrão do uso de IA nas redações "é predominantemente ocasional (28,1%) ou raro (25,4%), com apenas uma minoria a reportar uso diário (11,2%)", refere o documento, salientando que que os media 'online' concentram a maior regularidade de uso da tecnologia, com mais de metade dos jornalistas (57,6%) a afirmarem o uso diário e mais de um quinto (22,2%) o uso frequente.
Tal contrasta com a televisão, "que apresenta os níveis mais baixos" de uso de IA, em que 18% diz nunca usar IA e 15% a usar "apenas raramente".
Segundo o Livro Branco sobre a Inteligência Artificial no Jornalismo, "identificaram-se três perfis de uso": inexistente, pontual/individualizado (maioritário) e regular/orientado, com este último concentrado em grupos de media de maior dimensão.
"Emerge o 'paradoxo da eficiência': a IA encurta tempos em tarefas mecânicas, mas parte da poupança é absorvida por aprendizagem e validação. A qualidade só melhora quando o tempo libertado é reinvestido em edição, definição de ângulos e contextualização, situação que requer a medição de poupanças por tarefa e uma governação editorial robusta", lê-se no documento.
Outro dos destaques é a ambivalência da da IA: acelera a produção de desinformação através de media sintéticos e apoia a verificação através da triagem, análise de metadados e mecanismos de proveniência.
"Verificar é estruturalmente mais custoso do que gerar conteúdos falsos, pressionando rotinas de apuração e aumentando riscos reputacionais na ausência de validação formal", aponta o Livro Branco, referindo que "no contexto português, 64,4% dos/das profissionais afirmam que a IA terá impacto negativo ou muito negativo na disseminação de desinformação", com a imprensa a concentrar as avaliações mais negativas (50,5%)".
As redações tentam "mitigar estes riscos através de triagem forense, contenção autoral --- que proíbe a geração automática de conteúdos --- e rotulagem de materiais assistidos ou gerados por IA", mas "ainda assim, os incidentes reputacionais tornam-se particularmente prováveis quando existem fragilidades ou indefinições na cadeia de revisão editorial, como evidenciam os casos SAPO24 e "Pulsómetro"/CNN Portugal, em 2024".
No que diz respeito à ética, deontologia e responsabilidade editorial, "persistem lacunas generalizadas em dimensões fundamentais de governação", em que que mais de três quartos (80,4%) dos jornalistas "atestam a inexistência de cláusulas contratuais sobre IA, 64% reportam inexistência de código de conduta, 65,8% assinalam ausência de comissões de supervisão" e "67,5% documentam inexistência de formação obrigatória em IA".
Quase dois terços (63,4%) dizem "não existir protocolo de validação pré-publicação e apenas 15% reconhecem políticas claras de responsabilização por erros".
Estas fragilidades são "particularmente acentuadas em meios locais e regionais".
O Livro Branco e os dois estudos que o sustentam - Relatório de Diagnóstico e Análise Temática e Relatório de Contributos Participativos -- resultam de uma colaboração interinstitucional que reuniu seis instituições académicas nacionais (Universidade Nova de Lisboa, Universidade do Minho, Universidade Católica Portuguesa, Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, Universidade Europeia, Universidade da Beira Interior, Universidade de Coimbra), e duas universidades brasileiras (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro).