Vídeo da pessoa a deslizar numa levada é autêntico e foi filmado na Madeira?
Nos últimos dias, tem circulado amplamente nas redes sociais um vídeo que mostra uma pessoa a deslizar num troço de uma levada, sendo arrastada por um caudal forte de água. A gravação tem suscitado comentários indignados, incluindo de figuras públicas como o geógrafo Raimundo Quintal, que há muito alerta para comportamentos desadequados em áreas naturais sensíveis.
Ao mesmo tempo, surgiram dúvidas sobre a autenticidade do vídeo, bem como suposições de que pudesse tratar-se de uma montagem ou mesmo de um conteúdo gerado por inteligência artificial. Será o vídeo verdadeiro e terá sido filmado na Madeira?
A verificação da autenticidade e localização do vídeo foi feita com base em dois eixos complementares.
O primeiro consistiu numa análise técnica rigorosa ao próprio vídeo, com apoio de ferramentas de IA capazes de identificar incoerências, artefactos visuais e anomalias morfológicas normalmente associadas a vídeos gerados artificialmente. O segundo apoio veio de uma pessoa altamente conhecedora das levadas da Madeira, que avaliou o enquadramento natural e confirmou a localização, solicitando para não ser publicamente identificada.
Foi ainda conduzida uma pesquisa sobre conteúdos semelhantes, nomeadamente fotos e vídeos de natureza partilhados por particulares e empresas de actividades ao ar livre, ao longo dos últimos anos.
A análise técnica incidiu a avaliação de vários elementos. Vejamo-los:
Comportamento da água
A água é um dos elementos mais difíceis de simular com fidelidade em conteúdos artificiais. Modelos generativos conseguem hoje criar ilustrações ou pequenos loops de água, mas têm dificuldade em replicar turbulência real, microvariações do fluxo, espuma irregular e o comportamento de salpicos em contacto com objectos sólidos.
No vídeo analisado: O caudal apresenta movimento contínuo, sem quebras inesperadas ou repetições de padrões; A formação da espuma e os salpicos são altamente complexos, com variação natural de densidade e direcções imprevisíveis; O impacto da água no corpo da pessoa é fisicamente coerente, incluindo torções e redemoinhos pequenos que surgem de forma espontânea.
Estes detalhes são característicos de água real. A IA teria deixado vestígios de suavização artificial, padrões repetidos ou ausência de micro-movimento, nada disso presente nos frames do vídeo analisados.
Vegetação e paredes da levada
As paredes laterais da levada, a textura da pedra, os musgos, as zonas húmidas e secas e a vegetação circundante apresentam irregularidades naturais que não se repetem entre frames.
Conteúdos gerados artificialmente exibem frequentemente: padrões de vegetação repetidos; folhas com bordas gelatinosas; zonas que ‘ondulam’ de forma não física ou luz a reflectir de forma inconsistente.
Nada disso é observável nas imagens analisadas. A vegetação comporta-se com total normalidade, incluindo folhas parcialmente desfocadas pelo movimento da câmara, musgo aderente às paredes e brilho típico de superfícies húmidas. Estes detalhes são difíceis de sintetizar artificialmente de forma consistente ao longo de vários segundos.
Anatomia humana
O movimento da pessoa ao deslizar e cair apresenta: mudanças naturais de postura; rotações do tronco compatíveis com perda de equilíbrio; impacto com a água que produz deformações reais no corpo, e continuidade entre frames sem saltos anómalos.
Modelos generativos de vídeo frequentemente criam corpos com proporções erráticas, membros deformados em fotogramas rápidos, ou transições súbitas de postura. Nada disso ocorre no material analisado. O corpo humano mantém proporção estável e reage fisicamente ao meio envolvente.
Iluminação e profundidade
A luz natural distribuída pela zona de levada é consistente com um vale húmido e aberto. A claridade ao fundo e a sombra nos muros laterais surgem de forma coerente. A profundidade de campo varia com o ligeiro movimento da câmara, o que é típico de gravações de telemóvel.
Vídeos artificiais tendem a exibir: brilho excessivamente uniforme; sombras incoerentes; fundos que desfocam sem lógica; ou luz que parece ‘pintada’. Não foi encontrada nenhuma destas falhas.
Assim, o resultado da análise técnica é que tudo aponta para um vídeo real, gravado, provavelmente, com telemóvel, sem sinais de edição artificial.
Identificação da levada
A pessoa consultada pelo DIÁRIO — com profundo conhecimento das levadas da Madeira — analisou o cenário, topografia, inclinação, paredes do canal, cor da água e enquadramento vegetal. A conclusão é clara: o vídeo foi filmado na Levada do Alecrim, zona do Rabaçal, no concelho da Calheta.
Trata-se de um troço particularmente reconhecível para quem conhece bem o local, com características morfológicas específicas e fácil de distinguir de outras levadas. Aliás, a busca que realizámos nas redes sociais, apontam exactamente no mesmo sentido.
Temporalidade do vídeo
Apesar da forte circulação actual, a pesquisa efectuada indica que o vídeo poderá não ser recente.
Em Março de 2022, foram divulgados por particulares e por empresas de turismo de natureza vídeos e fotografias muito semelhantes, captados no mesmo troço da Levada do Alecrim. Algumas dessas imagens mostram pessoas a realizar descidas lúdicas em condições idênticas às do vídeo em análise.
Não é possível afirmar que se trata exactamente da mesma gravação, mas a coincidência espacial e comportamental sugere que o vídeo agora viral pode ter cerca de três anos.
A polémica recente — impulsionada por Raimundo Quintal e outros defensores da preservação ambiental — foca-se sobretudo nas consequências ecológicas destas acções. Esse debate, embora relevante, não constitui objecto deste fact-check, que se limita à verificação da autenticidade e localização do vídeo.
Do conjunto da análise técnica, da avaliação qualificada e da pesquisa contextual conclui-se: O vídeo é autêntico. Foi filmado na Madeira, na Levada do Alecrim, Rabaçal, Calheta.
É provável que tenha sido registado há cerca de três anos, existindo conteúdos semelhantes datados de Março de 2022.
Por tudo isto, a afirmação de que o vídeo é real e filmado na Madeira é avaliada como verdadeira.