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Crónicas

O antes não foi sempre bom

A casa cheira a sabão e a champô, há roupa lavada nas camas e uma panela ao lume, onde uma canja está a cozer devagar

Com o que resta da luz do dia faz-se o que falta fazer e a minha mãe manda arrumar as vassouras, a pá e tudo o que andou por ali, no quintal e de quarto para quarto. A casa cheira a sabão e a champô, há roupa lavada nas camas e uma panela ao lume, onde uma canja está a cozer devagar. O meu pai e eu fazemos tempo à frente da televisão, está quase na hora do telejornal do continente e o nosso termoacumulador demora a aquecer a água. Na casa do Laranjal não existem facilidades, ainda não se comprou um aspirador e o meu colchão é de lã de ovelha, mas temos um duche para banhos quentes.

No caminho, os rapazes das motas juntam-se à entrada do beco que vai dar à Visitação, o som das risadas sobe com a aragem fria que vem do ribeiro e, no escuro, o brilho das brasas dos cigarros quase dá para contar quantos são. Serão uma meia dúzia, não há rapaz dali que não tenha uma mota, a maioria já queimou a pele dos braços ao fazer a curva, naqueles acidentes de mota para um lado, condutor para outro. As motas e os rapazes têm má fama e o meu pai nunca se cansa de avisar.

Não é homem para se intrometer nas minhas escolhas a não ser que tenha mota ou um brinco na orelha. O que o meu pai não sabe é que, de momento, não há rapazes e a não ser que algum repare em mim no intervalo das aulas, no caminho para a paragem ou no autocarro o cenário não vai mudar. A minha mãe não me quer fora de casa depois das sete e meia e não me atrevo a pedir para ir a uma matiné de sábado à tarde numa discoteca. O melhor programa de domingo é na varanda da casa da minha tia Alice, a ver passar carros e a experimentar a maquilhagem da minha prima Ana.

As semanas são todas iguais, os fins de semana também, mas se calhar não é tão mau assim. Se tivesse amigos e amigas para ir ao cinema e às esplanadas da Marina não teria as roupas certas, nem os sapatos, nem o dinheiro para a coca-cola. E, por isso, a minha vida aos sábados à noite é esta, sentada no sofá da sala à espera do telejornal e da água quente. O que existe nos sítios que o meu irmão frequenta, as aventuras de que fala são tão irreais como o que vejo na televisão.

De cada vez que sai, com o colarinho do casaco levantado e gel no cabelo, eu fico para trás, a fazer de forte que, entre tias e primas, aprendi cedo que não me servem as queixas. Ele é rapaz e pode fazer tudo; eu sou rapariga e é melhor ficar em casa, o mundo que quero tanto conhecer é cruel. Às vezes, a minha mãe tenta explicar-me, as pessoas dizem coisas más e não há pior do que ficar falada, é como arrumar todas as possibilidades de ser feliz, de amar e ser amada. E é tudo tão estranho, que só quero dançar e ser o que sou: uma adolescente.

As adolescentes gostam de sair, têm amigas para contar segredos e sofrem com amores não correspondidos. A minha mãe não sabe como é difícil, como sou transparente e como a minha reputação não corre risco. Muito terá que mudar até que um rapaz dê por mim, a miúda tímida, gordinha e insegura, que nunca acerta no tom da voz, nem para pedir um bolo e um sumo ao balcão da Penha d’Águia. Os corredores e o pátio do liceu estão repletos de raparigas mais bonitas e muito mais populares, os rapazes suspiram por elas à noite e aos fins de semana.

A Lina Marta, esta que está sentada no sofá à espera do telejornal e com o cabelo molhado, não está na lista, a maioria não sabe que existo e os que me conhecem têm dificuldade em lembrar o meu nome. E não faz mal, eu só quero que a minha mãe entenda e me deixe sair aos sábados à tarde.