Conto de sonho em deserto de oração e de saída
Era uma vez um pastor de rebanho humano. Fazia oração no deserto antes de ir encontrar-se com o rebanho numa aldeia, como usava fazer. O sacristão acompanhou-o no transporte. Ao aproximar-se, o pastor apercebeu-se de trabalhos inesperados na estrada, nos edifícios e na igreja. Certa confusão tornava difícil reconhecer o local. As pessoas não eram as mesmas de quando lá costumava ir. E mais. Agora, ele era desconhecido da gente e também não conhecia muitas pessoas. Sentiu que não ia para celebrar a liturgia por dizerem que não era domingo. No meio destas estranhezas, perguntou quem era agora o padre que lá dizia missa aos domingos. Pe. Pereira dos Reis, imaginem, foi a resposta. Este seria de muita idade e já teria falecido há bastante tempo; daí a admiração de todos.
Estranho, ainda, é que tinha ido de camião de caixa aberta e o condutor foi arrumá-lo onde costumava. Passadas horas por ali, sem chegar a ver o interior da igreja, decidiu regressar com o sacristão a quem pediu que mandasse vir o camião. Entretanto, subiu para o camião e teve uma surpresa. Esperava que entrassem todos os que costumavam ter boleia e viu que eram bastantes mais, e alguns desconhecidos. O carro pôs-se em andamento pela estrada em obras, cheia de obstáculos, que obrigavam a manobras contínuas. A certa altura o camião derrapou e foi marcha atrás, assustando todos os ocupantes. Ao levantar-se verificou que o carro ia sem governo devido a levar muito mais pessoas que, sem ele dar por isso, tinham subido. E reparou que muitos deles aparentavam ser doentes mentais de algum asilo de psiquiatria. Mas o que o sossegou é que o camião ia embater em duas árvores que o deteriam, mas teve receio que derrubasse a primeira árvore, a mais fraca, e se despenhasse. Sentindo-se responsável do transporte avançou pelo meio dos ocupantes para ir guiar e controlar a situação, e teve a surpresa chocante de que o camião não tinha cabine nem motor. Ficou espantado.
Mais incrível, ainda, é que ele, mesmo do cimo da carroçaria, sem cabine nem motor, conseguia conduzir o carro por entre muitos obstáculos da estrada em obras. Pelo caminho, nem uma viva alma. Percorreu centenas de metros conseguindo ladear obstáculos de pedra e terra, e chegou a um ponto em que um pedregulho de aparência de casa pequena, com a forma de capela, barrava a estrada, agora em trincheira. Logo verificou que o camião não podia passar no espaço estreito deixado livre. Parou suspenso a pensar. Avançar não era possível, fazer marcha atrás não se sentia capaz de o fazer por 100 metros. Começou a sentir-se ansioso e logo angustiado com o que fazer naquela situação. Foram momentos de aflição terrível…não via saída. Nessa angústia acordou aliviado, mas apreensivo com os contornos do sonho, que agora se tornou sonho acordado.
Que significa isto? Aturdido, perguntava-se: um carro sem cabine nem motor? E não encontrar saída? Seria que o acordar na vida era promessa de saída? E, pouco a pouco, acorreu-lhe uma experiência recente com outro amigo ao volante de um verdadeiro carro. Ao cair da tarde tinham-se metido por um atalho para encurtar caminho e, embrenhados por veredas de terra, sobe e desce, iam-se sentindo perdidos e achados sem dar com a saída, até que anoiteceu e o escuro agravou a situação. Cortavam à esquerda, à direita, marcha atrás, aqui e ali, por estradas de terra solta, por entre vinhas, barracões e restolhos.
De repente, por caminho bem rodado, dão de frente com portão fechado e aviso a proibir e ameaçar de perigo. Cortam à direita. O escuro adensou e o descampado e o receio aumentavam. Que fazer? Um dos ansiosos lembrou-se de rezar um pouco a pedir esperança para encontrar saída do labirinto e avistaram um cão enorme no caminho, silencioso e sossegado, ao lado de um armazém agrícola. Quando a esperança quase se apagara, à enésima mudança de vereda, a surpresa deu sinal e os faróis como que falaram: eis a estrada que procuram à vossa frente!
E voltou a calma e a esperança. A saída estava ali: será que buscar leva sempre à surpresa e esperança da saída procurada no deserto em oração pelos caminhos do Ser? Afinal, dos 8 biliões de caminhantes pela casa comum, talvez, a maioria procura uma saída de esperança que, de surpresa, encontrará. Uma saída de caminho a viver.
Aires Gameiro