O riso para acertar o passo
No entra e sai das aulas, do corre para a cantina, eu seguia a maré, rodeada de raparigas e rapazes desconhecidos
O metro engolia e despejava milhares de pessoas que, todos os dias, de manhã e ao fim do dia, subiam e desciam as escadas rolantes das estações. Eu ia na multidão, mas subia pelos degraus para fugir da engenhoca. A experiência no aeroporto, no dia em que me despedi da Madeira para ser estudante universitária, abriu, numa viagem só, duas feridas difíceis de curar: o medo de cair e o orgulho ferido. E não sei qual delas magoava mais. Se a incapacidade de acertar o passo ou a evidência de que aquele mecanismo diabólico me colocava no lugar e nas minhas origens, numa curva esquecida do caminho de um sítio chamado Laranjal.
No entra e sai das aulas, do corre para a cantina, eu seguia a maré, rodeada de raparigas e rapazes desconhecidos que o acaso colocara no mesmo caminho. Uma parte sentia dificuldades em localizar a Madeira no mapa, outra confundia os arquipélagos, as ilhas e os sotaques e todos, assim à primeira vista, pareciam mais sofisticados, gente das cidades grandes, habituada a escadas rolantes, às portas dos prédios e aos elevadores. Eu acumulava pequenas vergonhas, umas atrás das outras, desde que aterrara em Lisboa.
A senhora que me acudiu no primeiro dia em que tentei sair do prédio de nove andares na Amadora por não saber como se abria a porta por dentro deve ter ficado com uma impressão engraçada. Talvez tenha contado à família e aos amigos sobre a jovem atarantada no hall do edifício que lhe pediu ajuda para um gesto tão simples. Não sei que impressão lhe causei naquela manhã de Janeiro de 1990, mas não adiantei detalhes para explicar a ignorância. No Laranjal não havia prédios daqueles, as pessoas viviam em casas com quintal, subiam e desciam degraus normais e abriam os trincos dos portões de ferro para chegar a casa.
A cidade era grande e, com sorte, nunca mais me iria cruzar com aquela senhora simpática e com todas as outras, as mais pacientes, as que repetiam as informações a uma velocidade mais adequada aos meus ouvidos de madeirense. Aquele falar era tão rápido como o abrir e fechar das portas do metro e eu fugia das portas do metro com medo de ficar entalada, ali, nem dentro, nem fora, comprimida naquela confusão das manhãs e das tardes nos transportes públicos de Lisboa.
Todos os dias, de volta a casa - primeiro ao quarto na Amadora, depois a um sótão na Reboleira e só mais tarde um apartamento em Alvalade - eu trazia da rua a sensação de que as pessoas ficavam indecisas, sem saber se a rapariga a quem explicavam direcções, ajudavam a preencher papéis e orientavam na candidatura à bolsa dos serviços sociais era só excêntrica, alguém longe de casa ou se padecia de algum tipo de défice de inteligência. A maior parte das vezes eu adormecia com a certeza de que, em certos assuntos, a maioria pendia mais para a segunda hipótese.
A maioria não sabia que, por debaixo da desorientação, estava uma miúda de 19 anos, criada entre a cidade e o campo, numa curva da estrada que até para alguns madeirenses não era fácil encontrar. E tinha saudades de casa, do mar, do abraço morno da ilha e nunca ia admitir isso, nem em voz alta para a almofada e menos ainda a alguém real, de carne e osso. Da solidão e saudade falei pouco, quase nunca, mas quando confessei que fugia das escadas rolantes por ter medo de cair algumas das raparigas passaram a descer e a subir os degraus comigo. Também se riram, também contaram piadas e foi o humor que me fez acertar o passo com aquele mecanismo.