Uma fita azul de cetim
A retrosaria arruinou-me, mas guardo o embrulho dentro da mochila vermelha como se fosse um tesouro
O toque da campainha quebra o silêncio e, num instante, os corredores enchem-se de adolescentes, de livros nos braços e permanentes no cabelo, enfiadas nas roupas largas dos anos 80. Eu vou ali, sou mais uma e sigo a corrente que abranda ao chegar à porta da frente. Do lado de fora há rapazes à espera das namoradas, grupinhos de amigas, clientes nas tascas e o cheiro das bolachas a cozer na fábrica da Insular. É o fim do turno da tarde e começa a escurecer, mas eu ainda quero comprar fitas de cetim e renda na retrosaria.
Vi a moda numa revista, tenho a certeza que me vai ficar bem a fita azul no cabelo, assim da mesma cor da saia e da gravata que mandei fazer na dona Deolinda pelo Natal. E se não for muito caro e ainda sobrar dinheiro do que andei a juntar nas últimas semanas também compro uma vermelha e outra em renda, que dá com os collants. É a primeira vez que entro numa loja sem a minha mãe ou sem uma tia. A senhora que me atende faz tantas perguntas que já não sei se foi boa ideia meter-me em modas.
E, além das fitas, ainda me vende um elástico para o cabelo e um pacote de ganchos para segurar as madeixas e eu conto bem as notas e os trocos. A retrosaria arruinou-me, mas guardo o embrulho dentro da mochila vermelha como se fosse um tesouro, o que é verdade. As próximas semanas serão sem o bolo e o sumo na Penha de Águia, posso trazer de casa umas sandes de queijo e fiambre. Ou posso não comer lanche à tarde, todos os dias há alguém que me diz que sou gorda, gordinha ou, pior, que sou forte. Uns bolos a menos não farão mal.
Agora acelero o passo para a paragem, não quero perder o autocarro, nem falhar a hora de estar em casa. A minha mãe desconfia de tudo e imagina que há rapazes, namorados, mas não há. Eu sou a Lina Marta do Laranjal, tão tímida como um gato selvagem, sem atributos de relevo e que, na maior parte do tempo, se sente transparente e invisível. A escola é nova e quase parece um colégio para raparigas; os rapazes não escolhem letras. Os mais bonitos estão no liceu e nunca dão por mim quando lá vou.
Não sei se isso vai mudar e até acho que a minha mãe se preocupa sem necessidade. Eu vivo para as aulas, para os pontos, para as notas e para a média, ainda não lhe falei da universidade ou de Lisboa. As minhas tias e a mãe alimentam-se de preocupações, vivem ansiosas e, se lhes conto, são capazes de passar os três anos que faltam a tentar demover-me do plano. Por enquanto, fica comigo, é uma coisa em que penso em alturas como esta, na viagem de regresso a casa. Do lado de fora da janela, enquanto o autocarro sobe encosta acima, as luzes estão ligadas e a cidade alta prepara-se para o serão.
E a minha cabeça está cheia de futuro, do que vai ser no fim do secundário e de como a minha vida vai mudar já amanhã, quando prender o cabelo com a fita azul a combinar com a saia, a gravata e a camisa que mandei fazer na dona Deolinda. A perspectiva do sucesso abraça-me, vejo-me tal e qual como a rapariga da revista e é por pouco que não falho a paragem, de onde se vê bem a casa e a minha a mãe no quintal. Todos os dias faz o mesmo, corre a ver se estou inteira e se sobrevivi à cidade.