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Fact Check Madeira

Estará o sector dos edifícios na Madeira a descarbonizar à conta da reabilitação energética?

Foto Shutterstock
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Há pouco mais de 20 anos, escrevíamos o título de um artigo "Preocupar-se com a energia..." Nessa altura, em 28 de Fevereiro de 2004, escrevemos "Construir, construir, construir... Crescem apartamentos, casas tradicionais, são as obras públicas, os grandes centros... E os gastos energéticos? Onde surgem no meio desta crescente evolução?"

E escrevíamos mais: "Existem casas que se comportam pior do que o clima. … verdade... No Inverno, estão geladas e são demasiado quentes no Verão. Resultado? Consumos astronómicos de energia para tornar o ambiente mais agradável, confortável, com os custos que isso tem em termos de emissão de gases com efeito de estufa. Para contrariar este problema, o nosso país terá um sistema de certificação energética dos edifícios que obrigará as novas construções a serem mais eficientes. Por força da nova directiva comunitária sobre o desempenho energético dos edifícios, Portugal terá de começar a preocupar-se, a partir de 2006, com os consumos, tanto das residências como dos serviços."

Já lá vão 18 anos e o que, afinal mudou, no que às condições de habitabilidade, em termos de aquecimento ou ambiente nos edifícios, nomeadamente das habitações, na Região Autónoma da Madeira? As famílias madeirenses vivem, hoje, mais confortáveis no seu lar em comparação com antes da introdução da certificação energética em 2006? Qual foi a evolução deste instrumento e o que dizem os números sobre as condições de habitabilidade das casas e edifícios em geral? Estaremos a viver melhor, em termos ambientais no interior dos edifícios

Segundo um recente relatório da ADENE - Agência para a Energia sobre o "Progresso do Grupo de Coordenação da ELPRE", destaca-se "a urgência de aumentar os investimentos na reabilitação energética de edifícios" e "recomenda a implementação de medidas abrangentes, como melhorar a informação sobre edifícios, fortalecer incentivos financeiros para eficiência energética e estabelecer planos de ação para a reabilitação da Administração Pública".

Salienta que "o sector dos edifícios está a caminhar numa trajetória favorável face à descarbonização, com o consumo de energia primária e as emissões de CO2 a registarem uma queda nos últimos anos. No entanto, é necessário reforçar o investimento na reabilitação energética para atingir todos os objetivos definidos para 2050" e acrescenta: "O 5.º relatório de progresso de monitorização da Estratégia de Longo Prazo para a Renovação dos Edifícios (ELPRE), o consumo de energia primária no setor dos edifícios reduziu cerca de 4,2%, tendo as emissões de CO2 diminuído 44,1%, enquanto a percentagem de área de edifícios renovados com enfoque na eficiência energética, estima-se estar próxima apenas dos 2%, face a 2018. O relatório alerta para a necessidade de se reforçar o investimento na reabilitação energética dos edifícios e refere que este sector continua a ser responsável por 33% do consumo de energia final e por cerca de 18% das emissões totais de GEE".

Ou seja, apesar da proliferação das certificações energéticas, necessárias para a obtenção do pedido de licença de utilização ou, no caso de edifícios existentes, para venda ou aluguer do imóvel e da emissão de uma Declaração de conformidade regulamentar (DCR) necessária para a obtenção do pedido de licença de construção nova, olhando ao mais recente ICOR - Inquérito às Condições de Vida e Rendimento, divulgado pela Direção Regional de Estatística da Madeira em 11 de Dezembro de 2023, cresce o número de famílias sem capacidade financeira para manter a casa adequadamente aquecida, tendo o percentual aumentado de 22,5% em 2022 para 23,3% no ano passado. Ou seja, 23 em cada 100 famílias madeirenses não conseguem sequer manter a casa em condições de habitabilidade no Inverno ou no Verão.

Esta ideia também é passada numa recente publicação de 17 de Dezembro do ano passado, publicada no Jornal de Notícias, na qual referem que "as regiões autónomas da Madeira e dos Açores são as zonas do país mais vulneráveis à pobreza energética. No continente, é no Norte, nomeadamente no Minho, Trás-os-Montes e Beira Alta, e no Algarve onde se concentra a maior percentagem de famílias que não conseguem aquecer as suas casas no inverno", acrescentando que "o Minho, Trás-os-Montes e Beira Alta atingem valores de pobreza energética superiores a 25%, segundo um novo índice de vulnerabilidade energética municipal. Além destes municípios do Norte do país, também as regiões autónomas chegam a um valor igual, destacando-se os de Vila do Porto, Angra do Heroísmo, Ponta Delgada e Lagoa, nos Açores, e Calheta, São Vicente e Porto Santo, na Madeira, com uma maior desigualdade na distribuição dos rendimentos e maior vulnerabilidade energética. Já nos municípios algarvios os valores situam-se entre os 17 e os 25%".

Este estudo, que cita o ICOR 2021, refere que a Madeira é a Região que tinha a maior pobreza energética, nomeadamente que tinha a maior percentagem de casas sem aquecimento (28,4%) e a segunda no que toca à necessidade de reparações (40,3%), melhor apenas face aos Açores. A nível nacional, 16,4% das famílias não tem aquecimento em casa e 27,2" têm casas a precisar de reparações.

Quanto aos resultados do Índice de Vulnerabilidade Energética Municipal (IVEM), conforme mostram as duas imagens anexas, a falta de aquecimento nas casas ocorre numa grande maioria das habitações e por município são casas na RAM que estão menos servidas destes equipamentos, sejam eles tecnológicos (eléctricos) ou tradicionais (a lenha/carvão ou outro tipo).

Diz o estudo, que tem por base dados dos Censos 2021, "a proporção de edifícios com necessidade de reparações segundo os Censos 2021. A nível nacional, quase 35,8% dos alojamentos precisam de reparações; esta proporção é superior no Norte (37,2%), Centro (37,4%) e, especialmente, na Madeira (43%). Realça-se que a percentagem de alojamentos com necessidade de reparação segundo os Censos 2021 está em linha com a percentagem de pessoas que vivem em tais alojamentos, segundo o ICOR".

Também fica claro que se em termos de aquecimento a Madeira nem está perto das necessidades de outras regiões, nomeadamente do interior do país, também é verdade que em termos de temperatura média, importante o arrefecimento das habitações ou, no mínimo, serem arejadas o suficiente para reduzir o impacto do radical nos meses mais quentes.

Ora, é precisamente para isso que servem as certificações energéticas, para classificar as habitações de A a G, conforme a qualidade no interior das mesmas e a verdade é que a evolução/obrigatoriedade deu-se nos últimos anos, sobretudo desde 2009. Na altura, fizemos um balanço inicial a 29 de Setembro desse ano e escrevíamos: "Até final de Janeiro apenas 36 casas estavam certificadas, actualmente já são mais de 2200 edifícios, entre apartamentos, fracções ou casas isoladas."

Citávamos dados da ADENE e especificávamos: "No Funchal, que tem mais de 1.000 edifícios certificados, o destaque vai mesmo para a freguesia de São Martinho, onde estão mais de metade dos registos no concelho, seguido de Santo António, precisamente as duas freguesias mais populosas do Funchal e com maior concentração de novas construções para habitação ou actividade de serviços. Em Santa Cruz, que a seguir à capital, detém um maior número de cumprimentos da lei, já foram certificadas mais de 670 edifícios. Bem ao longe e, sem que tenhamos as razões para tal facto, surgem os concelhos de Câmara de Lobos (175) e Machico (106), menos que em toda a freguesia de Santo António, por exemplo. Na lista, seguem-se os concelhos de Ponta do Sol (73), Ribeira Brava (57), Porto Santo (56). Bem lá abaixo e demonstrativo de um cenário de 'desequilíbrio' regional, seja nos níveis de novas construções e de actividade económica, seja nos índices de cumprimento da lei, estão São Vicente (22), Santana (15), Porto Moniz (6) e Calheta (2)..."

Passados estes anos todos, mesmo após alguns trabalhos actualizando esta temática, ficamos a saber agora que na Região Autónoma existem 46.239 Certificados Energéticos e Declarações de Conformidade Regulamentar/Pré-Certificado Energético (DCR/PCE), sendo que os primeiros casos já foram emitidos 34.001 e nos segundos casos foram emitidos 12.233.

No Funchal foram emitidos 22.866 dessa documentação, muito próximo da metade, 7.813 dos quais em São Martinho e 2.898 em Santo António, mas é de realçar as 2.910 na freguesia da Sé, superior à segunda freguesia mais populosa da Madeira, apesar de muito menos habitações. Santo António tem mais DCR/PCE e Sé tem mais Certificados Energéticos.

A seguir os concelhos de Santa Cruz com 7.681 (tem menos documentos emitidos que na freguesia de São Martinho), Câmara de Lobos tem 3.176, Machico tem 2.140, Câmara de Lobos tem 3.176, Ribeira Brava tem 1.824, Porto Santo tem 1.502, Ponta do Sol tem 1.478, São Vicente tem 872, Santana tem 863 e Porto Moniz tem 461. Uma evolução notória face ao passado.

Ainda que a mudança de Governo seja uma realidade, sobretudo depois dos resultados eleitorais de ontem, há temáticas que não deverão mudar, nomeadamente a Estratégia Nacional de Longo Prazo para o Combate à Pobreza Energética 2023-2050, aprovada em Resolução do Conselho de Ministros n.º 11/2024, de 8 de Janeiro.

"Um dos objetivos estratégicos do PNEC 2030 é o de garantir uma transição justa, democrática e coesa, reforçando o papel do cidadão como agente ativo na descarbonização e na transição energética, criando condições equitativas para todos, combatendo a pobreza energética, criando instrumentos para a proteção dos cidadãos vulneráveis e promovendo o envolvimento ativo dos cidadãos e a valorização territorial", refere-se no documento que, resumidamente abre portas a uma mudança de panorama, inclusive na Madeira.

Resumidamente, o documento aprova a Estratégia Nacional de Longo Prazo para o Combate à Pobreza Energética 2023 -2050 (ELPPE). E determina que neste horizonte temporal devem ser alcançados os seguintes indicadores estratégicos principais:

  • População a viver em agregados sem capacidade para manter a casa adequadamente aquecida: 10 % em 2030, 5 % em 2040 e < 1 % em 2050 (17,5 % em 2020);
  • População a viver em habitações não confortavelmente frescas durante o verão: 20 % em 2030, 10 % em 2040 e < 5 % em 2050 (35,7 % em 2012);
  • População a viver em habitações com problemas de infiltrações, humidade ou elementos apodrecidos: 20 % em 2030, 10 % em 2040 e < 5 % em 2050 (25,2 % em 2020);
  • Agregados familiares cuja despesa com energia representa + 10 % do total de rendimentos: 700 000 em 2030, 250 000 em 2040 e 0 em 2050 (1 202 567 agregados em 2016).

E ainda estabelece que "a estrutura do combate à pobreza energética se organiza em torno dos seguintes quatro eixos estratégicos de intervenção:

  • Promover a sustentabilidade energética e ambiental da habitação;
  • Promover o acesso universal a serviços energéticos essenciais;
  • Promover a ação territorial integrada;
  • Promover o conhecimento e a atuação informada.

Além disso, cria o Observatório Nacional da Pobreza Energética (ONPE -PT), com a missão de acompanhar a evolução da pobreza energética a nível nacional, nomeadamente estabelece que o ONPE -PT deve, no âmbito da ELPPE:

  • Definir novos indicadores estratégicos ao nível do território que permitam auxiliar o desenho e avaliação das políticas públicas;
  • Propor políticas públicas para a erradicação da pobreza energética;
  • Promover a articulação entre diferentes áreas de política pública que concorram para os objetivos da ELPPE;
  • Promover a atuação territorial descentralizada, através da articulação entre entidades da administração direta e autónoma do Estado, nomeadamente autarquias locais, bem como da operação em rede com outros agentes locais, incluindo as agências de energia e as instituições privadas de solidariedade social;
  • Promover, em articulação com o INE, a melhoria da informação de base e o desenvolvimento de novas estatísticas através da integração de diferentes fontes de dados;
  • Elaborar e propor ao Governo os planos de ação para o combate à pobreza energética (PACPE) decenais (horizontes 2030, 2040 e 2050), revistos com periodicidade trienal."

Resta dizer que ao fim deste longo caminho, é expectável que haja melhorias significativas nos indicadores, sobretudo no que à Madeira diz respeito.

Na verdade, a pobreza energética demonstra que há ainda um longo caminho a percorrer para que a Madeira, no mínimo, atinja as médias nacionais. E apesar de a certificação energética e da declaração de conformidade regulamentar terem ajudado a melhorar imenso o panorama da habitabilidade das casas, grande parte não passa de uma conformidade, sobretudo nos primeiros casos. Melhorias só na habitação nova, nomeadamente na última década. Veredicto: Verdade sim, mas com muita imprecisão