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Crónicas

A vida moderna

O telefone preto era, por si, um orgulho para aquela miúda de 13 anos

Eu tinha 13 anos quando os senhores dos correios vieram instalar o telefone em cima do aparador do quarto de jantar e esse foi um dos dias mais felizes da minha adolescência, tão importante como todos os que passei no Lido e os meses de ensaios do teatro da paróquia.

O telefone, preto e brilhante, ficou lá, quieto e mudo, só se percebia que estava vivo quando se levantava e ouvia o som. Eu fiz isso muitas vezes nos dias a seguir ao grande acontecimento. E quando subi a entrada da escola dos Ilhéus senti-me outra, mais próxima das outras miúdas.

Nas conversas do intervalo grande, enquanto avaliavam as pernas dos rapazes que jogavam à bola, talvez fosse possível participar ou dizer qualquer coisa de interessante e em que pudesse meter o telefone, dizer que tinha um em casa como todas as pessoas modernas e ricas.

Não era o meu caso. Eu não era nem moderna, nem rica e continuava a ser uma adolescente gorducha, com roupa feita em casa que todos os dias apanhava o 12 para o Jamboto na Avenida do Mar. A minha mãe era a mesma, a senhora Celina, e o meu pai também, o mestre Gabriel, pedreiro.

A nossa vida não tinha mudado, nem nós, mas tínhamos um telefone num lugar e num tempo em que ainda se ia à venda quando era preciso fazer um telefonema importante. Na verdade, todas as chamadas eram essenciais: para recados, para chamar o médico ou falar com a família embarcada na Venezuela ou na África do Sul.

Não se falava por falar e mesmo quando era para acalmar as saudades as conversas eram apressadas por causa da conta ao fim do mês. Os adolescentes do meu tempo iam descobrir que se podia namorar ao telefone, mas até isso era feito às escondidas, longe dos ouvidos do pai e da mãe.

O telefone preto era, por si, um orgulho para aquela miúda de 13 anos pouco afortunada no aspecto e nos talentos, pelo menos nos que eram valorizados em 1984 entre aquela amálgama de camisas unissexo, calças de ganga, permanentes, sapatilhas e botas alentejanas.

E todos os sábados, o dia de varrer e arrumar, cabia-me limpar o pó, endireitar o fio e voltar a pousar o auscultador no descanso. Eu sentia um orgulho naquele aparelho que, de uma certa maneira, me ligava ao Mundo e, para o caso, era irrelevante o facto de me assustar quando tocava.

A minha prima Ana repreendia-me por falar alto e também por falar baixo quando atendia o telefone. Acho que nunca percebeu que, por debaixo de todas as camadas de coragem, estava uma miúda tímida e cheia de vergonha, sem saber ainda como habitar aquele corpo novo e enfrentar a vida moderna a que subia encosta a toda a velocidade.