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Crónicas

A fotografia

A minha geração, ou pelo menos uma parte importante, não tinha nem os disfarces, nem sentia vergonha por ir como ia às festas de Carnaval da escola, com aquelas máscaras em cartolina

Foi o professor que nos meteu aos dois em frente da máquina e registou o momento no recreio da escola do Laranjal, uma casa velha com infiltrações no telhado e carteiras de madeira ainda com o espaço para colocar o tinteiro. Nunca o usámos. Nós, os miúdos do fim dos anos 70, tínhamos esferográficas, canetas de feltro, papel de lustro e fazíamos as nossas máscaras de Carnaval.

É nesses trajes que estou na fotografia, apanhada na sexta-feira antes das férias, naquela espécie de festa que fazíamos de improviso. Lembro-me que os olhos que cortei na cartolina ficaram desencontrados, o que não ajudou na pose. Isso e aquele disfarce esquisito que a minha mãe me arranjou, quando coseu papel de joeira na minha saia azul escura e mandou-me para a escola assim mesmo, com uma coroa na cabeça e a máscara enfeitada com serpentinas.

O professor Baltasar quis saber o propósito, mas eu não sabia, era o que se fazia no Laranjal e não se perguntava a razão. O importante era ninguém nos reconhecer à primeira e tanto servia coser papel à roupa ou tapar a cara com uma meia com os ladrões de bancos dos filmes. As mulheres vestiam roupa de homem, os homens faziam ao contrário e, depois do almoço, corriam a vizinhança, entravam nas casas e comiam mal-assadas (ou malassadas) com mel de cana.

A minha mãe, que tinha medo de ladrões, abria a porta do caminho e divertia-se a tentar adivinhar os mascarados que a tratavam por tia ou por prima e comiam com gosto o que lhes oferecia das muitas taças que pousavam na mesa da cozinha. O meu professor tinha poucos conhecimentos do nosso Carnaval, era de fora e não entendia que se pudesse passar a tarde na varanda a admirar casamentos grotescos, com noiva, noiva e convidados, todos vestidos com roupas velhas que, lá por cima, não havia dinheiro para luxos ou disfarces.

Assim como o que traz vestido o meu par na fotografia de 1979, um Zorro com chapéu, mascarilha, capa preta e uma espada a valer e sem qualquer semelhança com os cabos de vassoura que, num instante, nos tornavam espadachins tão bons como os dos filmes a preto e branco do Errol Flynn. A nossa vida era assim uma mistura das coisas reais, dos objectos de todos os dias e de como ganhavam importância na nossa imaginação. E era preciso muita para não ter vergonha e enfrentar a máquina fotográfica sem ter um vestido de princesa ou de fada ou de índia.

A minha geração, ou pelo menos uma parte importante, não tinha nem os disfarces, nem sentia vergonha por ir como ia às festas de Carnaval da escola, com aquelas máscaras em cartolina. O Entrudo era assim, sempre tinha sido assim num lugar que, aos poucos, se habituava ao mundo novo que subia pela encosta. O meu colega da 2ª classe fazia parte dessa vida que estava a nascer; eu e os outros, os meus pais, as minhas tias, os meus vizinhos não sabíamos ainda que a nossa maneira de viver caminhava para a extinção. A fotografia prova isso, mas isso não me impediu de comer e de me divertir nesse Carnaval sem me preocupar com futuro ou outro problema ao não ser a possibilidade de calhar em dia de tempestade e estragar a festa e os enfeites com serpentinas no terraço e nas laranjeiras do quintal.