Crónicas

Arrependimentos

Na verdade, lamento toda a pressa que tive, que me consumia

Mentimos mais vezes do que parece, sobretudo a nós próprios e esta de dizer que não levamos arrependimentos pela vida fora ou que, se fosse possível, faríamos tudo da mesma maneira é comum. Eu confesso-me, devo ter dito e repetido muitas vezes que cá comigo seria igual, com os erros, os disparates e cegueira de ser jovem e estar convencida que não carecia de lições, nem de apoio. É capaz de ser assim com as pessoas que, aí pelos 30 anos, têm ideias muito claras de como querem viver.

Eu tinha e o que estava para acontecer seria longe da casa onde crescera, longe da asa protectora das tias e daquele mundo semi-rural, com brigas por causa da água, partilhas de terrenos e demais desentendimentos que, até na minha família, fez estragos. Não voltei as costas por ter sido infeliz ou por outra má razão, eu só queria ir embora, experimentar outra maneira de viver e ser, de facto, independente. Se ficasse, não seria.

E, na minha cabeça, as minhas tias e todo o saber que guardavam estariam ali por muito tempo ainda. Ou pelo menos até ao momento em que a vida me trouxesse de volta a casa. Então, a minha tia Alice iria passar-me a receita de torta de cenoura numa vez que fosse visitá-la e talvez o meu tio Humberto, que era alfaiate, me explicasse como é que se cosia roupa na máquina de costura. Depois, mais à frente, a minha tia Teresa teria também uma folga para me contar os segredos de uma horta e de um jardim bonitos.

Nunca fiz isso, limitei-me a ter umas conversas vagas quando ia lanchar aos domingos. A minha cabeça estava preenchida pelo trabalho ou, como dizia a minha tia Teresa, por escrever muitas páginas de diário. Ela contava as vezes que o meu nome aparecia, devia sentir orgulho nisso, mas a minha tia mais nova era tão tímida e reservada que era difícil perceber se estava feliz, alegre ou triste. E só abria o coração quando falava da terra, do que plantava, do que estava a nascer.

O momento, aquele que nos traz de voltar ao lugar de onde somos, vinha longe. E eu tinha 30 e poucos anos, o Laranjal era da infância e, na altura, parecia-me bom viver num apartamento sem quintal e com vista desafogada para a cidade. E achei que, como corria o mundo, fazia pouca diferença saber de jardinagem ou aprender a coser na máquina Singer que, nesse tempo, o meu pai tinha encostado num canto. Não me parecia possível que alguma vez me fizesse falta.

Mas o tempo corre sempre no mesmo sentido. As minhas tias morreram, o tio Humberto foi-se e a demência devorou a memória da tia Conceição e agora penso muitas vezes que devia ter lanchado mais vezes com eles, devia tê-los visitado mais vezes e ouvido tudo o que podiam ensinar. Na verdade, lamento toda a pressa que tive, que me consumia. Pressa para viajar, pressa para trabalhar, pressa para agarrar tudo ao mesmo tempo.

Devo ter dito que assim era certo, como certamente disse de outras decisões e escolhas e que não me arrependia. A juventude não é própria para arrependimentos; isso chega com a idade, mais ou menos como as dores nos ossos e nas articulações. Não vou mentir: se fosse possível viver de novo certamente faria quase tudo de outra maneira. Teria estudado mais, talvez tivesse trabalhado mais, certamente teria estado mais com os meus velhos e teria menos pressa. Outra mentira que se conta aos jovens é que é preciso fazer tudo de uma vez. Não é. Os sonhos não se perdem apenas porque envelhecemos.