Crónicas

O bom, o mau e a nau catrineta

Por inspiração constitucional, passámos a semana a “abrir caminho para uma sociedade socialista”. No domingo, um comentador político revelou, por artes ocultas, uma lista de compras de supermercado. Na segunda-feira, o primeiro-ministro, perante grande expectativa da comunicação social, enumerou os bens alimentares essenciais e, por isso, merecedores de borla fiscal. Na quinta-feira, nova comunicação ministerial. Desta feita o anúncio de que a falta de habitação seria resolvida com aumentos de impostos e com a ocupação pelo Estado da propriedade privada. E ainda dizem que o preâmbulo da Constituição é uma peça de museu?

O bom: O Mundo de Elisa

A Elisa tem 13 anos. Gosta de cães e gatos. Gosta da cor verde turquesa néon. Adora gelado com sabor a menta, mas dizem os amigos que não é muito gulosa. Ouve música eletrónica e vê séries na televisão. Escreve poemas, desenha histórias, cria cenários e edita vídeos. A Elisa tem uma miopatia congénita rara. Essa circunstância não a diminui, nem a torna diferente de todos os seus colegas. Mas faz dela uma rapariga especial. Especial porque a sua condição de saúde não a define, nem a limita. Especial porque, apesar dos desafios que a vida lhe lança, a Elisa é uma adolescente como outra qualquer. Porque, apesar de tudo, a Elisa atreve-se a sonhar. Bem alto. Até que um dos seus sonhos ganhou corpo – a publicação de um livro que reunisse toda a sua arte. A ideia, que começou na Escola Gonçalves Zarco, chegou, com a ajuda de amigos, colegas e dos artistas do Coletivo da Sétima Dimensão, até à Feira do Livro do Funchal. E lá, em plena Avenida Arriaga, a Elisa subiu ao palco para apresentar o seu “Mundo de Elisa”. A obra junta trabalhos dos alunos do Curso Livre de Banda Desenhada do Conservatório, de artistas regionais e, como não podia deixar de ser, as ilustrações da Elisa Ponte. O livro, que era um sonho, é também uma hipótese de fazer a diferença na sua vida, pois as receitas da sua venda revertem, na totalidade, para a continuidade da terapia que precisa. Não que esta seja uma história de comiseração. Não é. O livro que a Elisa escreve todos os dias, em conjunto com a sua família, professores e amigos, é uma prosa de vontade e superação. Como escreveu uma das suas professoras, a Elisa dá-nos muito mais do que recebe.

O mau: Crimes no Centro Ismailita de Lisboa

Pouco se sabe sobre as motivações dos crimes abjetos praticados no Centro Ismailita de Lisboa. Essa missão é, para já, da justiça. Mais tarde, talvez venha a ser da política. O que não pode é ser das duas ao mesmo tempo. Especialmente quando se quer fazer da tragédia um ato de propaganda, digna da mais desprezível indigência política. Confundir, como quis André Ventura, um crime hediondo com a suposta balbúrdia da nossa política de imigração roça o terrorismo político. Porque usa o sentimento de perigo e insegurança, que grassa após qualquer crime, para plantar a semente da xenofobia. Não que seja xenófobo ou racista discutir a política de acompanhamento e integração dos refugiados. Mas fazê-lo, partindo do princípio que os imigrantes, refugiados ou não, são uma ameaça à nossa segurança, é um caminho muito perigoso. É uma simplificação a que nenhuma democracia resiste. É esse limiar mínimo de decência que Ventura não tem ou, tendo, insiste em quebrar. Julgo que não o faz por convicção, mas por mera conveniência. Sob o pretexto da coragem política, Ventura diz o que acha que os eleitores querem ouvir. Fá-lo ao arrepio da coerência, da verdade ou de qualquer outro princípio basilar que julgávamos comum e irrenunciável. Não se trata, pois, de uma questão ideológica, mas de mera aritmética eleitoral. O problema é que o resultado dessa equação tem vítimas reais. A transformação do crime de um refugiado, numa atribuição coletiva de culpa a quem defende uma política de acolhimento e integração dos que mais precisam, é um atentado político à nossa cultura e à nossa memória histórica.

A nau catrineta: NRP Mondego

“Lá vem a Nau Catrineta, que tem muito que contar! Ouvide agora, senhores, uma história de pasmar.” Garrett escreveu sobre uma nau, mas o poema popular parece feito à medida do NRP Mondego. Primeiro, as condições do navio-patrulha. Motores avariados, manutenções eternamente adiadas, fugas de óleo, falhas gerais de energia a bordo. Parece a descrição dos velhos carreireiros a quem era confiada a ligação da Madeira ao Porto Santo. Infelizmente, é a anatomia patológica de um navio da Marinha portuguesa. Suspeito que não seja um relato isolado. Segundo, os marinheiros insubordinados. O problema do desafio à hierarquia militar, justificado ou não, é que as Forças Armadas não são uma entidade patronal qualquer, e os militares não são trabalhadores convencionais. Não há paralelo entre, por exemplo, a greve dos professores e a recusa dos marinheiros. Não que uns tenham mais direitos do que outros, mas porque a indisciplina militar é crime. E é crime porque coloca em causa a segurança do Estado. Se à insubordinação juntarmos a partilha de informação confidencial sobre um equipamento de guerra, temos todos os ingredientes para, mais uma, tragicomédia militar. Tancos 2: Rebocados no Atlântico. Não há vencedores, na história do Mondego. Sobra-nos, apenas, um país derrotado. “E à noite a Nau Catrineta, estava em terra a varar”.