Crónicas

A arte, os trans e Sevilha

Esta semana, “no seguimento de vários atos de contestação pela representação de uma personagem trans por um autor cia e pela criação de condições de acesso e representatividade para pessoas trans, o Teatro do Vão decidiu alterar o elenco do espetáculo, integrando a atriz trans Maria João Vaz na interpretação da personagem Lola”. Foi assim que o Teatro Municipal São Luiz anunciou ao público a alteração em “Tudo sobre a minha mãe”. Este, a juntar a muitos outros atos já vistos anteriormente, um pouco por toda a parte, fazem-me questionar o que queremos nós para a nossa vida, o que pensamos sobre o que representa realmente a liberdade que dizemos ter conquistado e para além disso, o que é a arte, o que é a criatividade e até que ponto devemos ser condicionados por certo tipo de conceitos. Não está em causa a luta ( que respeito ) pela igualdade, nem tão pouco pela criação de oportunidades para que uns não sejam à partida, mais do que outros, mas se começamos a ter a obrigação de por cada estilo de pessoa, género, deficiência, raça ou sexualidade, ter que procurar uma pessoa exatamente assim para a representar isso deixa em si de ser representação e tolhe todo o espaço de criação e de genialidade de um ator que se transforma e se adapta. Como no caso do livro de uma autora negra que foi traduzido por uma pessoa branca e que posteriormente teve que recusar o papel e sentiu-se inclusivamente com necessidade de pedir desculpa. Ou de quem acha que um ocidental por usar tranças se está a apropriar culturalmente de outros povos e culturas quando em África todas as miúdas usam perucas com cabelos lisos.

É importante começarmos a refletir sobre o nosso espaço de atuação, se queremos continuar a colocar rótulos em seres humanos e dividi-los em caixinhas bem compartimentadas ou se por outro lado podemos ser o que bem quisermos sem termos que ter escrito na testa o que somos. Em vez de trabalharmos para um mundo em que possamos ser livres à nossa maneira sem termos que levar com o estigma disto ou daquilo continuamos a separar, a dividir, a compartimentar entre uns e outros como se uns fossem mais do que outros. Quando este tipo de ideologia trespassa as redes da arte então é porque algo vai mesmo muito mal na nossa sociedade. Nada que me espante na realidade é apenas a constatação de um facto. A Arte é a elevação máxima da liberdade, do nosso poder de imaginação e de criação sem barreiras, sem preconceitos ou rótulos, se através dela não nos podemos expressar como bem queremos, muitas vezes procurando imaginários desconhecidos que nos projectam para outras dimensões do pensamento e do desenvolvimento cognitivo, então deixa de ser arte, deixa de ser criatividade e passa a ser apenas um espelho da realidade sem rasgo e sem genialidade. Alimentarmos esta onda do politicamente correto é só sinónimo de uma podridão interior que nos revela piores seres humanos. Eu quero lá saber quando vejo um filme ou uma peça de teatro de que género é a pessoa que está a representar, o que me importa a mim se no ato de criação estética e dramaturga as escolhas recaem neste ou naquele senão absorvermos o que o criador tem para nos apresentar? Nesta guerra permanente entre uns e outros, deixamos entrincheirar-nos num espartilho que não é compatível com a lógica da condição humana no século XXI. Vão-nos impondo o que deve ou não ser correto mas acima de tudo levando a que os mais novos segmentem o que deveria ser unificado. Deixarmos que se criem fronteiras ou deveriam existir pontes é parar no tempo e deixar de evoluir.

Regressei a Espanha nos últimos dias para manter um ritual anual no aniversário de um amigo. Caminhamos por esta altura para Sevilha para vivermos uma cultura que nos agrada e uma gastronomia que nos seduz a ambos. Talvez por ter passado parte das férias da minha infância no nosso país vizinho com os meus pais nunca tive em relação aos espanhóis ou à sua cultura qualquer tipo de animosidade nem os vi como adversários mas sim como complemento da nossa história. Adoro sentar-me na barra de uma das muitas “Bodegas” que por ali existem para me deliciar com a tortilha única, com uns calamares bem fritos, um presunto pata negra como só eles sabem fazer e umas boas “cañas” a acompanhar. Gosto da simplicidade com que se trabalha e com a relação que se estabelece entre quem está dentro e fora do balcão. Da comunicação que se estabelece e a troca de ideias. Facilmente se percebe que por ali a ASAE não é tão dura nem vai ao ponto de lhes retirar certos sinais da tipicalidade tão genuína.

Vivem o entretenimento e a festa de uma forma única, não tão programada nem tão carregada de dogmas. É interessante de ver os bares cheios ao final da tarde alguns que se tornam autenticas discotecas ainda antes do sol se pôr por completo dando azo à alegria e à vontade de dançar e ser feliz. Por cá ainda vemos muitas vezes a noite como um sitio onde se vai engatar ou com uma certa promiscuidade. Ali vê-se nos olhos dos mais novos e dos mais velhos que a vontade de diversão está acima de qualquer outra segunda intenção. Mesmo as músicas de que não sou particularmente adepto ali fazem sentido, chamam-lhe “salero”, eu diria que é só a magia de alguém que está mais para colecionar momentos únicos e se predispõe a fazê-lo do que andar constantemente agarrado ao telemóvel. Notei também que se vai fumando cada vez menos na noite em contraste com Portugal. No Lux ainda esta semana quando entrei vi a pista completamente vazia o que há hora a que foi me pareceu estranho. Lá percebi depois que os seguranças tinham ordens para ser mais rígidos com a exigência de não fumar em espaços fechados e por isso, grande parte das pessoas concentravam-se na varanda que parecia pequena para tanta gente.