Crónicas

No cabelo, onde reside o pecado

Parece-me que chegou de uma vez numa onda tão silenciosa como era a opressão dos anos 70 e 80

No Laranjal aprendíamos cedo, pouco mais do que meninas que o nosso corpo já não era bem nosso, que havia partes como que concessionadas. O cabelo era do pai, que, em casa, decidia se se podia cortar ou se era para deixar crescer até à cintura. O pai também determinava se as filhas mostravam as pernas e se tinham autorização para ir à praia mostrar quase tudo.

Eu tive sorte. O meu pai nunca exerceu o poder. Aos seis anos cortaram-me o cabelo quase rente, aos 16 ia ao banho e usava biquini e aos 18 estava em Lisboa por minha conta, mas a minha história não reflete aquele código de pequenas coisas, aquele não se pode fazer porque o pai não gosta ou o noivo não quer. As mulheres não decidiam, pois de facto não era delas aquele corpo.

Não tinham direito sobre o cabelo, sobre o modo de vestir e estavam desgraçadas quando os noivados se desfaziam. Onde iriam encontrar um rapaz que as quisesse? O corpo, que nunca fora delas, tivera dono. E as mães, que viviam assustadas, vigiavam as filhas com medo que se deixassem levar. O mundo estava a mudar, mas uma mulher com o noivado desfeito estava condenada a sofrer como se não fosse suficiente ter o coração partido.

Se se pudesse avistar o futuro numa bola de cristal talvez se tivesse evitado tanto medo. O mundo, que se começava a vislumbrar nos anos 80, estava prestes a varrer as mentalidades e até as mais puritanas do Laranjal da minha infância. Os tempos eram outros e não sei sequer por onde começou: se quando começaram a fazer madeixas no cabelo; ou quando se passou a aceitar e amar as filhas grávidas antes do casamento.

Parece-me que chegou de uma vez numa onda tão silenciosa como era a opressão dos anos 70 e 80. E, embora surja como um detalhe sem importância, quase fútil, o cabelo foi importante. O cabelo é sempre importante para as mulheres. Lembro-me da minha aflição quando fiquei doente e fiz quimioterapia, ainda hoje não sei separar a ideia de ter um cancro do horror a ficar careca, de como teria sido mais doloroso olhar-me ao espelho.

E, como se vê pelos protestos no Irão, também é essencial para os homens. É uma medida para exercer o poder, para dominar tal como faziam os homens no Laranjal da minha infância. O cabelo que o Islão esconde, que obriga a usar véu e que mata quem não o sabe usar ou tem a ousadia de mostrar parte do cabelo, essa parte do corpo que parece resumir todo o pecado, desejo e tentação sexual.

Sei que é importante, sei que o meu me define e sei que, lá no Irão como no Laranjal, quando os homens decidem que as mulheres se devem tapar, cortar ou deixar crescer estão apenas a oprimir, a cortar a liberdade que cada pessoa deve ter de dispor de si e do seu corpo. Na luta por esse direito uma mulher de 22 anos, pouco mais do que uma menina, morreu espancada pela polícia e outras queimam véus e desafiam o poder. O motivo é menor? Não, não há formas menores de opressão.