Crónicas

De onde vem tanta raiva

O mundo era assim mais cor-de-rosa. Bem sei que esse mundo não tinha telemóveis e redes sociais a envenenar os espíritos com a ideia de que os outros têm vidas mais interessantes, enquanto a nossa parece a do hamster na roda, a acelerar para lado nenhum.

Na minha adolescência não era assim. As pessoas viviam com menos e nem sabiam que podiam ter mais. Trabalhavam muito, subiam e desciam degraus para chegar à paragem do autocarro, conformavam-se em longas esperas onde quer que fossem. Matricular os filhos, comprar leite ou votar, havia filas para tudo.

Nem os ricos viviam à grande. Pelos menos os ricos que nós conhecíamos. Tinham outros hábitos, mais aparelhos na cozinha e uma televisão. E não demorou muito até se democratizar e ganhar espaço num canto das salas das casas do Laranjal. A televisão a preto e branco, que se ligava para ver as notícias e a telenovela. Ao domingo dava desenhos animados e um filme de cowboys.

Nos filmes, os bons ganhavam aos maus e era garantido que, por muito complicado que fosse, nunca morriam. O rapaz do filme passava por muito, mas no fim casava com a rapariga e era feliz para sempre. Nesse lugar onde viviam os heróis da ficção televisiva havia regras e, do que me lembro, ninguém perdia tempo a tentar perceber os motivos dos maus.

Os nossos dias eram austeros, sem desperdícios de comida, de roupa, de dinheiro. As mães soltavam-nos na rua, na fazenda ou no descampado mais perto de casa e esperavam que estivéssemos de volta à hora do jantar. Lembro-me que faziam poucas perguntas e lembro-me que, uma vez, o meu irmão fez estragos no nariz de um vizinho. A mãe veio tirar satisfações e a minha mãe ficou sem saber o que fazer. Aquilo não era assunto de meter os pais, era nosso.

Também não se desperdiçava tempo e, aos sete anos, todos sabíamos andar à porrada e, em caso de necessidade, corríamos para casa que, no nosso quintal, era mais fácil organizar as defesas. O que nos sobrava, o que não tinha medida era a nossa imaginação. E era alimentada pela televisão. Acho que foi pela televisão que soubemos que havia ricos, pessoas muito ricas.

Mas, nem por isso, vivíamos com esta raiva de agora, este modo de olhar os outros, envenenado pela fotografias da felicidade dos outros. Com o filtro certo e o ângulo melhor parecem todos parte de uma ficção, ainda maior e mais lustrosa do que as telenovelas e séries dos anos 70 e 80. A diferença é que as novelas faziam sonhar, querer ser melhor, não entortava a perspectiva.

Os outros também somos nós e, pela minha parte, a minha vida tem tanto de mágoa, como de partes boas. Continuo a ter mais sonhos do que dinheiro, a olhar-me ao espelho e a ver defeitos, mas isso, por enquanto, não me enche de raiva.