Crónicas

O Inimigo Externo

1. Disco: são portugueses e vão no seu segundo longa duração. Chamam-se Cassete Pirata e, “A Semente”, já é do ano passado. Letras muito bem urdidas onde a liberdade não é conceito escondido. Um dos melhores de 2021, no que aos portugueses diz respeito.

2. Livro: mesmo sendo discordante politicamente de Jaime Nogueira Pinto, leio-o com muita atenção. “Hegemonia, Sete Duelos Pelo Poder Global”, é um livro imprescindível para quem gosta de história política numa perspectiva global. Uma viagem pelo passado que começa na Guerra do Peloponeso e acaba com uma análise do “conflito” EUA-China.

3. Com as devidas desculpas, permitam-me que manifeste o meu contentamento pelo resultado que o meu partido teve nas Eleições Legislativas. Próxima etapa: Regionais da Madeira 2023 e ter um resultado melhor que os 0,53% obtidos nas de 2019. Não comparo o que não tem medida de comparação.

4. A política, nas sociedades democráticas, encontra cada vez maiores dificuldades em fortalecer as suas instituições. A polarização prevalece como se encontrarmo-nos a meio, negociar, conciliar e mediar, fossem desnecessários. Confunde-se mediar e negociar com traficar e corromper, como se as soluções fossem sempre binárias, como se os resultados fossem escolhas políticas que se excluem mutuamente. Com isto, a política perde a sua dignidade e, no seu lugar, surgem “opções” que primam pela radicalização e pela simplificação de posições, levando a que as instituições democráticas percam a sua legitimidade. Se a política se degrada, a primeira vítima é sempre a democracia. O resultado das eleições de 30 de Janeiro parece ter tido o efeito de dividir ainda mais, o que já estava dividido.

Não aguentamos quatro anos de confronto, com a sociedade constantemente mobilizada e dividida entre o “nós” e o “eles”. Precisamos de diálogo, de persuasão, de convencimento, coisa que só se consegue quando entendermos que temos adversários políticos, como a democracia manda, e não inimigos.

Esta política de constante confronto, tem o seu ponto mais alto nas redes sociais, cujo funcionamento se adapta perfeitamente a escolhas simples entre bons e maus, índios e cobóis, impolutos e corruptos, redentores e condenados. Um mundo a preto e branco, feito à medida para gente cinzenta.

A preocupação, nestes tempos, de quem se dedica à actividade político-partidária, terá de ser a de devolver uma certa normalidade no modo como nos relacionamos com quem pensa diferentemente de nós.

Sou um forte defensor das ideologias, como marcas de pensamento, mas rejeito o dogmatismo. Pensamento político não é religião e, mesmo esta, muito mais dogmática, procura o ecumenismo.

A política e, principalmente, os partidos não são clubes de futebol que seguimos quase fanaticamente (sigo o meu assim), irracionalmente.

No entanto, escolho criteriosamente com quem quero conversar e também tenho linhas vermelhas que não passo, por motivo nenhum.

5. Já são alguns os estudos e a literatura produzidos, sobre a estratégia do inimigo externo, a lógica do bode expiatório. É assunto merecedor de reflexão, numa terra onde “Lisboa” é onde mora o mal dos nossos pecados, no dizer de quem nos governa. Em 40 anos, não fora o acabar com a colonia, e o betão e o alcatrão por todo o lado, e o nosso desenvolvimento era quase nada. Até o CINM, uma das melhores e mais geniais criações da Autonomia, deixámos que andasse nas bocas do mundo sem, muitas das vezes, o defender adequadamente. Aumentámos brutalmente o funcionalismo; o mérito não conta para nada, pois a competência não é promovida; o nepotismo familiar e partidário é a regra; a Assembleia Regional é um sítio onde se legisla muito pouco e se aprovam propostas de resolução que valem quase nada; não temos regime fiscal próprio, porque isso dá muito trabalho; não se aprofundou a Autonomia; a mobilidade marítima e aérea, permitam-me a crueza, é uma porcaria; e por aí fora. E a culpa é toda do Terreiro do Paço. A legitimação do poder regional quase que é realizada através da construção de imagens de inimigos internos e terríveis ameaças externas. “Nós, os extremamente competentes, não fazemos porque os do lado de lá não deixam, apoiados por uns de aqui que nos bloqueiam”.

Os políticos que nos governam, desde sempre, alimentam, com este mar pelo meio, de longe e de peito inchado, o inimigo externo, a quem atiçam para tirar disso capital político. Ganham com isso o direccionamento do descontentamento contra um inimigo que está longe e não contra eles.

Este inimigo externo, não passa de um inimigo imaginário. Acreditem não haver uma única alminha no Sr. Governo Regional que perca um minuto de sono com ele. A construção do inimigo imaginário reprime o nível do real, o único onde os problemas reais podem ser reconhecidos, nomeados e abordados. Nenhum problema real pode ser resolvido no reino imaginário. Os nossos problemas são reais e, alguns, já os enunciei acima.

Se isto sempre foi assim, com a questão pandémica, apareceu mais um inimigo. Um inimigo que permitiu incutir acariciar, modelar e criar um medo verdadeiro nas pessoas, pois a morte é real. Ter medo do PS — de cá e de lá — é um irrealismo. Os de cá então, coitados. O máximo que se consegue, é ser raivoso para com eles. Com o COVID, não. Existe e mata indiscriminadamente. Quem não se lembra dos primeiros tempos em que tantos maltrataram e afugentaram os que são o nosso maior sustento: os turistas? Como se eles fossem leprosos. Quem não se lembra das manifestações para fechar o aeroporto e deixar, o “povo superior”, preso no paraíso e sem sustento? Quem não se lembra do irracionalismo que o Governo Regional demonstrou ao longo da gestão de tudo isto, adoptando medidas sem qualquer sustentação científica, puros achismos? Tudo legitimado pelo “outro”, pelo “traidor” e pelo “bicho”, em afirmações de poder a roçar o despotismo.

Seymour Martin Lipset definiu, muito bem, a legitimidade como a “capacidade de um sistema político gerar e manter a crença, de que as instituições políticas existentes são as mais apropriadas e adequadas para todos”. A democracia não exclui os tiques de autoritarismo. Podem valer pouco mais do que o que sai da boca para fora, mas não deixam de o ser.

Uma das grandes vantagens da democracia, é o facto de esta ser menos dependente da legitimidade do desempenho, do que os sistemas autoritários, pois o fracasso é atribuído aos governantes, em vez de ao sistema, e a substituição dos titulares ajuda à renovação. Isso faz-se no momento mais importante de qualquer democracia: as eleições.

Isto não passa de manipulação de massas e de uma forma de populismo. O Governo fala pelo povo e resiste, em nome de uma soberania popular, a todos os males que nos querem fazer. Não é por acaso que, logo no dia imediato às eleições, muitos dos situacionistas comparavam a Madeira à aldeia de Astérix, cercada por um país, todo ele, cor-de-rosa.

Propagar o medo com a prática do discurso da urgência, da necessidade da excepcionalidade, tentando mobilizar o rebanho contra os perigos que não nos permitem o descanso, numa eterna luta contra o que nos ameaça. No final, ganha-se quando se consegue normalizar essa divisão antagónica do espaço social.

Nada disto é novo. Está tudo teorizado e praticado amiúde, nos mais variados cenários. O que irrita é ainda haver largas maiorias que caiam nestas manipulações como se patinhos fossem.

Divididos, nunca seremos mais fortes.

6. “Willst du auf Deutsch? Wenn du willst kann ich es auch auf deutsch sagen” - Rui Rio, na noite eleitoral.