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Alterações do Governo à Lei de Saúde Mental deixam "sociedade desprotegida"

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Foto: Shutterstock

O presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) manifestou hoje "sérias dúvidas" relativamente às modificações propostas pelo Governo à Lei de Saúde Mental no domínio do internamento de inimputáveis, alertando que tais alterações deixam "a sociedade desprotegida".

Henrique Araújo referiu num colóquio, em Lisboa, que em julho deu entrada na Assembleia da República uma proposta de lei do Governo (que será debatida esta quinta-feira) que visa a substituição da atual Lei de Saúde Mental, prevendo a revogação da norma que permitia estender a medida de internamento (compulsivo) para além do limite máximo da pena que lhe foi aplicada.

O Governo pretende revogar um artigo do Código Penal por considerar questionável a constitucionalidade do regime que permitia que "as medidas de internamento tenham, na prática, uma duração ilimitada ou mesmo perpétua, contrariando o entendimento de que deve valer para todos - cidadãos e inimputáveis - a regra de que não pode haver privações da liberdade com caráter perpétuo ou de duração ilimitada ou indefinida".

Deste modo - alertou o presidente do Supremo - "se um determinado agente inimputável, finda a duração da pena máxima aplicável ao crime cometido, continuar afetado por uma anomalia psíquica que represente potencial perigosidade para a sociedade, será libertado logo que atingido aquele máximo".

Henrique Araújo enfatizou que "cerca de 70% dos inimputáveis internados foram autores de crimes contra as pessoas, com grande incidência em crimes de homicídio, na forma tentada ou consumada". A isto, acresce, que "nos crimes mais graves a anomalia advém, maioritariamente, de esquizofrenia e outras perturbações psicóticas".

"Tenho, portanto, sérias dúvidas de que a solução proposta seja aceitável, não só porque deixa a sociedade desprotegida, mas também porque, sendo já difícil a ressocialização dos delinquentes não afetados por anomalia psíquica, muito mais difícil se mostra a reinserção social de indivíduos com graves patologias mentais".

O presidente do STJ observou, a propósito, que o ordenamento jurídico português "é pródigo em soluções legais muito avançadas no plano da arquitetura das estruturas de acompanhamento, tratamento e apoio social, mas falha sempre rotundamente na concretização prática desses apoios, não só neste capítulo das doenças mentais, mas também, por exemplo, no da promoção e proteção dos menores e das pessoas com deficiência, ou no da reinserção social".

"Em vez de se começar por dotar as estruturas já existentes de meios físicos e de profissionais suficientes para uma resposta eficaz, desenham-se novas estruturas, altamente burocratizadas", (...) cuja operacionalidade vai tardar a materializar-se", defendeu.

Nesse sentido, "seria muito mais útil e eficaz investir no modelo de intervenção e funcionamento das estruturas já disponíveis, sem prejuízo de se projetar um outro futuro para o tratamento das doenças mentais, com a implementação de serviços de saúde mental inseridos na comunidade, próximos das pessoas afetadas por anomalia psíquica e suas famílias, assim se desconcentrando os serviços de psiquiatria que, em regra, são prestados nos hospitais gerais e nos hospitais psiquiátricos".

Henrique Araújo chamou também a atenção para o facto de, os últimos dados estatísticos, indicarem que mais de 20% da população portuguesa sofre de perturbações psiquiátricas e cerca de 65% das pessoas afetadas não tem qualquer tratamento.

"Apesar disso, o orçamento para a saúde mental é de apenas 5% do orçamento geral para a saúde. Não é, portanto, de estranhar que o Plano Nacional de Saúde Mental, que deveria estar concluído até 2016, continue sem execução, tendo o DL 113/2021 sido "atirado" para o final de 2025 a criação e instalação dos serviços locais e regionais de saúde mental", criticou.

Regressando à questão das alterações contidas no diploma do Governo, o presidente do STJ advertiu que "deixar a comunidade à mercê dos impulsos violentos de um inimputável, sem possibilidade de o controlar, é um risco demasiado elevado" pelo que a proposta do executivo, naquele ponto específico, "deve merecer grande cautela e ponderação".

"Adiantando a minha posição sobre a questão, defendo que deveria manter-se o enunciado do nº3 do artigo 92 para salvaguarda da ordem jurídica e da paz social, embora com períodos sucessivos de prorrogação inferiores aos que atualmente estão previstos", disse.

Na opinião de Henrique Araújo, os procedimentos de revisão periódica obrigatória, cujos prazos deveriam ser encurtados (como consta do diploma do Governo) e a possibilidade de ser apreciada pelo tribunal, a todo o tempo, a existência de causa justificativa da cessação do internamento, constituem garantias suficientes de que o internamento compulsivo/involuntário será sempre por um período limitado à estrita necessidade da prestação dos cuidados de saúde mental ao agente e ao despiste da sua perigosidade social".

Na quinta-feira, o parlamento discute em plenário a proposta de lei do Governo e vários projetos-lei do Livre, Chega e BE um projeto de resolução do PAN relativos à Lei da Saúde Mental.