Análise

Equívocos democráticos

Só com eleitos competentes e trabalhadores é possível fazer mais e melhor

A campanha eleitoral para as Legislativas de hoje foi de tal forma eloquente que entre o temor de um retrocesso civilizacional e a constatação da incerteza, vinga a convicção que as eleições mais disputadas de sempre poderão ficar manchadas por uma abstenção sem precedentes. E não é só por causa da Covid-19, pois viveram-se momentos inacreditáveis, férteis em equívocos que desprestigiaram a democracia, não convenceram indecisos, nem esclareceram eleitores.

Se alguns sentem saudades dos fastidiosos tempos de antena, das brigas vazias de mensagem, dos comícios sem ritmos modernos e sem propostas sustentadas e até dos animais de estimação, muitos não disfarçam o incómodo resultante da incapacidade de muitos candidatos em fazer diferente. Daí que constatem fragilidades que levam a que a abstenção - que foi de 51,4% em 2019 - possa aumentar para níveis que ponham em causa a legitimidade dos eleitos e dos partidos. Eis algumas:

O receio do voto útil

Todos os votos são importantes. Mas na prática nem todos contam e uns valem mais do que outros. Lamenta-se que os legítimos votos de 37 mil madeirenses não tenham servido para nada em 2019, como outros tantos não vão decidir coisa nenhuma no final da noite de hoje. Quase 30% dos boletins, depositados nas urnas das ‘legislativas’ não elegeram qualquer deputado. Contudo, perante a cruel constatação não foram poucos os que criticaram a abordagem jornalística. Se julgam que fomos nós que tratamos os votos ‘inúteis’ como lixo estão equivocados. Tudo é discutível, desde títulos, a ilustrações, mas convém não ser hipócrita. O que se lamenta é a preguiça política e que na Assembleia da República ninguém se mexa para que todos os votos sejam aproveitados, porque, de facto, devido aos interesses instalados, muitos não contam. Bastava que, como escrevemos, houvesse um círculo nacional de compensação.

O apelo inútil

Quantas vezes o Presidente da República já defendeu a revisão da lei eleitoral, por se revelar “rígida” - já que “exclui votação fora de domingos e feriados, e não permite horários flexíveis, assim fechando portas a situações excepcionais”, como se notou neste tempo de pandemia? E porque é que só repete esta mensagem de forma veemente quando apela ao voto? A que se deve a falta de cuidado em massacrar os ouvidos dos partidos que recebe com frequência no Palácio de Belém sobre esta matéria?

Só agora Marcelo Rebelo de Sousa percebeu que as eleições de hoje são “diferentes”, dado o relevo do voto antecipado que sugere “a oportuna reponderação do dia de reflexão, pensado para outra época e para outras preocupações”? Não tem conselheiros, nem assessores que em tempo útil sugiram intervenção imediata?

De que têm medo os decisores deste País em inovar, por via da votação alternativa e arrasar de vez com a argumentação conveniente que a culpa, que já foi dos cadernos eleitorais por limpar, é agora do apego à terra dos emigrantes? Como se explica que o Estado que tem fé absoluta no Portal das Finanças, que foi audaz na criação do Cartão do Cidadão, que simplificou processos a vários níveis e que convive com exemplos notáveis de inovação digital seja incapaz de mudar para melhor num processo que nada tem de complexo?

Os debates fúteis

Marcelo Rebelo de Sousa entende que as eleições são diferentes porque confirmaram “uma audiência sem precedente nos numerosos e mobilizadores debates e entrevistas”. Comprovadamente foram mais entretenimento do que esclarecimento, mais discussão do que propostas de superação das crises e dos receios. Logo, houve mais gente a ver, como se estivesse perante um ‘reality show’, o que nada diz sobre a relevância pública, a mais valia dos conteúdos ou até sobre a influência na decisão final.

As omissões e ódios

O presidente da República acredita na existência do “apego à democracia”. Pudera, não há outro regime recomendável. Winston Churchill também terá dito que “a democracia é a pior forma de governo, com excepção de todas as demais”.

Só que falta o último passo - “o do voto”. E nesse capítulo, não deve haver ilusões.

A campanha passou ao lado de temas incontornáveis, como a Educação ou Ambiente, mas também menosprezou nichos, generalizando, falando mais para os idosos do que para os jovens, dando voz e espaço a devaneios, políticos que produzem mentiras e devem à transparência, só porque devem ter lido algures que dizer mal de alguém pode render votos ou euros. Ainda bem que já existe o Centro contra o Ódio Digital, uma organização não-governamental que quer impedir as tecnológicas de dar ferramentas a indivíduos que promovem o ódio e a desinformação online.

De resto, como em todas as eleições, há segmentos ocupados por gente séria e trabalhadora, esclarecida e metódica, com pacto com a cidadania empenhada, com a lucidez, com criatividade rebuscada e com as ideias passíveis de implementação. Nem todos vão ganhar, eleger deputados e ter motivos parar sorrir. É a democracia. Mas acumularam experiência e afirmaram com autenticidade um propósito de intervenção.