Crónicas

Do tempo da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas

As imagens de como era o mundo não chegavam de modo simples ou fácil. Ou corríamos a procurar, a tentar saber, ou era tudo limitado à curva do caminho, ao Laranjal, ao Lido nas férias, à escola no resto do ano

O globo terrestre em cima da mesa de vimes é do tempo da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. A mesa terá menos uns anos, mas são ambos dos anos 80, de quando o mundo estava dividido entre russos e americanos e as pessoas ouviam música em cassetes ou discos. O telefone servia para recados urgentes e, para fotografias, era preciso ter uma máquina ou ir aos estúdios da cidade.

Eu tenho várias no Amândio Fotógrafo, todas no mesmo cenário, com a mão pousada num corrimão e numas escadas de fingir e ao lado de uma palmeira num vaso. Sem contar com as outras todas que, por causa do cartão da escola, tirei nas várias casas de fotografia que, por essa altura, havia de fartura na baixa. Era entrar, dar um jeito ao cabelo, arregalar os olhos e ir buscar o resultado três dias depois.

No meu caso, o que vinha dentro daquelas carteiras em plástico era sempre uma adolescente sisuda e com ar de poucos amigos. Fosse a cores ou a preto e branco, nunca me ajeitei bem com as fotografias tipo passe, muito pela timidez que me tolhia a cabeça assim que passava o portão da entrada da casa do Laranjal. A voz sumia-se até para pedir um bolo, mas isso não comoveu a minha mãe. Aos 15 anos tirou-me a rede para assuntos como tirar fotografias, tratar das matrículas, ver os horários, comprar livros e cadernos. E passei a ter que o fazer sozinha.

Como tinha sempre pressa para acabar o bordado, era eu que fazia as voltas, esperava nas filas – e nos anos 80 não existia lugar onde não se fizesse fila para ser atendido – preenchia os papéis e andava acima e abaixo de autocarro. E, entre comprar o fiambre que faltava no supermercado Pró Povo, pagar a conta da luz ou ir ao pátio do liceu tirar os nomes dos manuais, lambia as montras das sapatarias e contava o dinheiro a ver se dava para um bolo ou para uma revista. Ou para os dois.

No tempo da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas a informação vinha em livros, jornais e revistas. Também dava na televisão, mas eu gostava de ler e fazia das tripas coração para comprar, de vez em quando, como se fosse um luxo, uma revista com fotografias a cores em papel lustroso. E era um luxo ver os vestidos bonitos das modelos e tentar copiar para ficar parecido. A minha mãe resmungava sempre que alguém pedia para usar a velha máquina Singer.

A máquina era anterior à II Guerra, tinha o tampo comido pelo caruncho e, apesar de desconjuntada, funcionava, mas para a minha mãe fazer roupa dava nervos e nenhum proveito a não ser menos tempo para se sentar nas cadeiras de vimes da sala a puxar pontos no bordado. E, na maior parte dos casos, as revistas serviam apenas para ver, para imaginar outra vida.

As imagens de como era o mundo não chegavam de modo simples ou fácil. Ou corríamos a procurar, a tentar saber, ou era tudo limitado à curva do caminho, ao Laranjal, ao Lido nas férias, à escola no resto do ano. E embora tenha saudades desse tempo, saudades de ter 15 anos, o desejo de correr mundo, de ver mais, de saber mais fez-me ser quem sou.