Artigos

“Politicamente Correto”

Não finjamos que ser “politicamente correto” é ser intelectualmente desonesto

Visto que chegamos àquela altura do ano em que se assiste ao bombardeamento diário do cidadão comum com propaganda política e promessas muitas vezes incumpridas após eleições, falemos sobre a vontade de combater o recurso ao “politicamente correto”, esse ideal que alguns políticos ditos “antissistema”, apesar de pertencerem ao sistema, entendem ser a causa dos males civilizacionais.

Tal como qualquer outro argumento, acusar alguém de ser “politicamente correto” é algo legítimo quando esse alguém é um cidadão comum, com um emprego comum, sem qualquer responsabilidade na gestão da res publica. É claro que, mesmo assim, essa expressão revela uma certa hipocrisia da parte de quem a usa porque evidentemente somos criaturas políticas a partir do momento que atingimos a maioridade e somos sempre tendenciosos ao querer criar o ambiente que nos beneficia. Foi essa, na verdade, a nossa rota evolutiva enquanto civilização humana. Contudo, quando o argumento começa a ser usado como arma no debate político entre cidadãos que fazem da sua vida a política, perde todo o sentido.

O “politicamente correto” é entendido, por alguns, como a mitigação da realidade, isto é, como um eufemismo dos problemas que nos assombram principalmente quando nestes estão envolvidas pessoas pertencentes a grupos que tipicamente formam algum tipo de minoria. Outros, mais revoltados com as óbvias falhas do sistema, acusam esta atitude de suposta amenização como autêntica distorção, mentira ou ocultação dos factos como se de uma traição ao zé-povinho se tratasse, a fim de o incendiar em fúria e de o convencer para suportar a sua causa.

Logo, a conclusão a que se chega é a de que estamos a criticar políticos por saberem desempenhar o papel de políticos, papel esse que envolve ter diplomacia e saber como transmitir os factos a fim de manter a calma política da sociedade e assim evitar o desenvolvimento de tensões que não se coadunam com o espírito democrático e humanístico regentes. Porque a verdade é que, enquanto as ações de uns pretendem manter pacífico aquele que já é um clima de desconfiança entre alguns grupos de cidadãos, as ações de outros visam extinguir por completo qualquer vestígio de confiança.

Portanto, por mais que a alguns revolte a atitude de políticos que não aceitam o recurso à típica “linguagem de rua” para assinalar problemas que todos sabem existirem, o “politicamente correto” é a regra de se ser político, tal como é regra o uso de uniforme em algumas profissões e tal não faltar injustificadamente ao trabalho também o é. Por isso, por que nos revoltamos quando um profissional não cumpre as regras da sua profissão e nos indignamos quando um político cumpre as regras da sua função diplomática?

Importa aqui distinguir aquelas que são as atitudes de um cidadão enquanto político de profissão daquelas que tem enquanto cidadão comum, nomeadamente aquelas que contendem com o abuso de cargo para a prática de crimes. Estas são as verdadeiras “traições” ao sentimento de sociedade que nos abrange a todos. Não aquelas.

Nesse sentido, não finjamos que ser “politicamente correto” é ser intelectualmente desonesto. É antes prestigiar a política e evitar que ela se torne na já conhecida “peixeirada” na praça pública que pouco beneficia o debate político. Ser “politicamente correto”, queiramos ou não, é o paradigma sobre o qual a política contemporânea deveria funcionar. Porque, simplesmente, já não vivemos no tempo em que o linchamento da “bruxa da aldeia” era considerado legítimo e produtivo.