Crónicas

Velozes navios terrestres

FOTOGRAMAS

No dia 30 de dezembro de 1903, Bernard Harvey Foster, Mona Beatrice e a pequena filha de ambos desembarcam do navio Briton no Funchal, tendo nos seis meses anteriores feito os preparativos necessários para não só trazer pela primeira vez um automóvel à Madeira, como para o colocar em efetiva circulação num território particularmente desafiante pela sua orografia e quase total inexistência de uma rede viária. É na sequência das meticulosas diligências de Foster que um 10 h.p. Wolseley chega por sua vez de Inglaterra ao Funchal no dia 21 de janeiro de 1904, passando a circular durante cerca de quatro meses pelas suas precárias e íngremes ruas e estradas, gerando grande espanto junto da população local que o designa de “«navio terrestre», associando à terra a máquina que melhor conheciam e todos os dias aportava na baía do Funchal”. Quem o afirma é Eduardo Jesus, economista, Secretário Regional do Turismo e Cultura e autor do documentado livro O primeiro automóvel na Madeira (2015), acrescentando ainda que o desconhecimento efetivo perante o que representava o motor do veículo ter 10 cavalos, leva a mesma população a designá-lo de “«invasor de 10 cavalos», fazendo uma alusão à chegada, vinda do mar para terra de uma máquina com aquelas características.” É portanto com temor e desconfiança mas não sem curiosidade e fascínio que a população local encara a presença da nova máquina, acorrendo à sua passagem, medindo esforços com a mesma (sobretudo os mais novos, ao correrem atrás dela tentando vencê-la), sentindo-se as autoridades no dever de a inspecionar e de avaliar as habilidades do condutor (mesmo sem terem qualquer manancial de referências ou competências para a tarefa!). O evento da sua presença é ainda óbvio motivo de registos fotográficos, quer pela parte do próprio Foster, quer de Vicente Gomes da Silva Júnior, que retrata o automóvel de vários ângulos em pelo menos duas ocasiões. De uma delas é exemplo uma fotografia de 17 de maio de 1904, aquando da sua passagem na atual Estrada Monumental e então New Road, a qual (um pouco à “semelhança” das imagens da semana passada) denota (agora) numa mesma superfície o óbvio contraste social e poderio económico entre o aprumado e vistoso casal Foster e os garotos sujos e descalços duplamente interpelados pelas novas máquinas da modernidade: o barulho do motor do automóvel, o clique do obturador do aparelho fotográfico.

É esse entusiasmo quase juvenil que ainda hoje marca o acolhimento e efusivas reações locais (e que não se restringe ao nível regional) às provas de automobilismo na ilha: grandes eventos desportivos-sociais que têm como ex-libris o Rali Vinho da Madeira, cuja 62ª edição decorre já nos próximos dias 5 e 6 de agosto. Desde a chegada do veículo de Foster à primeira edição do rali, em 1959, não só a rede viária se desenvolve enormemente como carro motorizado não só deixa de ser alvo de suspeita e receios, como passa a ser estruturante de uma imagética da ilha; por desde então estar indelevelmente associado a conceções de progresso e de modernidade, a revolucionárias possibilidades de acesso a outros bens, contatos e vivências, e a uma nova experiência do espaço e do tempo, em tudo similar àquela proporcionada pela fotografia também a partir de inícios e meados século XX. É sobre ela que falaremos na próxima semana.

Ana Gandum
com a colaboração do Museu de Fotografia da Madeira – Atelier Vicente’s.