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Da pandemia à pantomina

A memória dos Homens é curta, diz-se; portanto, nada melhor que dar-lhe um pequeno refresco.

Corria o ano de 1899 quando surgiu na cidade do Porto um surto de peste negra – a tal que dizimara um quarto da população da Europa, durante a Idade Média.

A princípio, parecia apenas que andava por ali um “andaço”. Alertado o Posto de Saúde Municipal, o seu diretor, Dr. Ricardo Jorge, apurou que que se tratava de uma espécie de febre com inchaços debaixo dos braços.

Ricardo Jorge identificou a bactéria da peste, e alertou as autoridades nacionais. O governo de Luciano Castro decretou medidas de defesa do Reino, reforçadas com a imposição de um cordão sanitário em torno do Porto, guarnecido por tropas de vários Regimentos de guarnições do Norte.

A questão sanitária e científica tornou-se, deste modo, política.

Entretanto, cerca de 20 mil pessoas saíram da cidade antes da chegada das tropas, até porque estava prevista pena de prisão de três a seis meses para quem tentasse furar o cerco.

Nada de inédito: nos séculos XV e XVI, a Corte vagabundeou pelo Reino, enquanto a cidade de Lisboa se debatia com pestilências.

Os jornais locais, bem como as “forças vivas”, optaram pelo tema da vitimização do Porto às mãos da capital. Ricardo Jorge passou de salvador a inimigo público, e teve de ser acompanhado por escolta policial, ainda que nunca tivesse defendido o cordão sanitário, que considerava um disparate.

No combate à epidemia distinguiu-se um nosso conterrâneo, o funchalense Luís da Câmara Pestana, diretor do Instituto de Bacteriologia de Lisboa, que confirmou a identificação da bactéria. Partiu para o Porto para avaliar os métodos de tratamento da peste. Sem o saber, foi contaminado. Regressando a Lisboa, declarou-se a doença, que acabou por o vitimar, com apenas 36 anos.

O Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge e o Instituto Bacteriológico de Câmara Pestana perpetuam estes dois famosos médicos.

Infelizmente ficaram esquecidas as ameaças e más vontades que despertaram.

Porque, se estivessem ainda bem presentes, talvez tivessem sido evitado situações de negacionismo, incompreensão, oportunismo e até negociatas surgidas com a presente pandemia.

Tal como em 1899, a atual pandemia deu origem a pantominas políticas, que bem poderiam ter sido evitadas – que mais não fosse, pelo ridículo.