Crónicas

«Há palavras que não dão com as coisas para que servem»

A desvalorização do género na linguagem é uma bandeira que muitas pessoas carregam ao peito com orgulho, principalmente porque a invisibilidade que essa linguagem falsamente neutra não as atinge – ou acham que não as atinge. E por isso reagem de forma negativa a qualquer tentativa de tornar a comunicação mais inclusiva

A língua portuguesa assume, desde há muito, que falar de portugueses é falar de homens e mulheres e que falar de Homem ou de Homens é referir a humanidade. Nesse sentido, as mulheres «devem» sentir-se representadas neste uso do masculino como neutro relativamente ao género.

Foi no dia 28 de maio de 1911 que Carolina Beatriz Ângelo se tornou na primeira mulher a exercer o direito de voto em Portugal, nas primeiras eleições depois da implantação da República. Na altura, Carolina Beatriz Ângelo assumiu que quem legislou e determinou o direito de voto a todos os portugueses maiores de 21 anos que soubessem ler e escrever, residissem em território nacional e que fossem chefes de família, incluiu nessa formulação as mulheres: residia no território nacional, era médica e viúva e, por isso, cumpria os requisitos estipulados por lei. Como tal, pediu para ser incluída nos cadernos eleitorais.

O requerimento levantou celeuma e tanto a Comissão de Recenseamento como o Ministério do Interior rejeitaram o requerimento. O caso seguiu para tribunal, que lhe deu razão, e Carolina Beatriz Ângelo pôde votar nas eleições de 1911. Foi a primeira e única mulher a fazê-lo – quer nesse ano, quer nos anos seguintes, já que o código eleitoral foi prontamente alterado (em 1913) a fim de esclarecer que para ter capacidade de voto, para além dos requisitos anteriormente em vigor, teria de ser também «cidadão do sexo masculino».

Este episódio da nossa história demonstra bem como o masculino neutro não é, de facto, neutro. Este é um caso em que o espírito do uso do masculino excluía as mulheres – ao usar a formulação «portugueses» não passou pela cabeça dos legisladores que aquela formulação incluísse as mulheres. Mas esta exclusão mental de parte da humanidade também acontece na mente de quem ouve ou lê, já que na maior parte das vezes, a imagem que se cria na mente é, de facto, de elementos do sexo masculino. É por isso que o masculino neutro da nossa língua é, na verdade, um falso neutro.

A desvalorização do género na linguagem é uma bandeira que muitas pessoas carregam ao peito com orgulho, principalmente porque a invisibilidade que essa linguagem falsamente neutra não as atinge – ou acham que não as atinge. E por isso reagem de forma negativa a qualquer tentativa de tornar a comunicação mais inclusiva.

A tentativa de fazer um uso da linguagem que seja efetivamente mais neutro e que não torne invisível um dos sexos não é uma moda, nem tão pouco é tão recente quanto isso. Em Portugal, remonta pelo menos a 2006, quando uma resolução do Conselho de Ministros (n.º 64/2006, de 18 de maio) reconhece, no artigo 15.º do Anexo II, a necessidade de se neutralizar ou minimizar a especificação do sexo na redação dos atos normativos, através de formas mais inclusivas ou neutras. Em 2009, a Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género lançou o «Guia para uma Linguagem Promotora da Igualdade entre Mulheres e Homens na Administração Pública (e que pode ser descarregado no site da CIG). Mas o uso de uma linguagem mais inclusiva não é uma questão «apenas» portuguesa. A UNESCO tem, desde 1999, um «Guia sobre Linguagem Neutra em Função do Sexo». O Conselho da Europa, desde 2007, uma recomendação aos Estados-Membros sobre «Normas e Mecanismos para a Igualdade de Género» que sublinha a importância do uso de uma linguagem mais inclusiva. Também a recomendação sobre a «prevenção e a luta contra o sexismo», de 2019, reitera que «A linguagem e a comunicação são instrumentos essenciais à igualdade de género e não devem consagrar a hegemonia do modelo masculino.» A recomendação defende que uma comunicação «livre de estereótipos constitui uma forma positiva de educar, sensibilizar para e prevenir o comportamento machista». E isto implica não só «utilizar as formas feminina e masculina ou neutra das designações», mas também eliminar expressões sexistas da nossa comunicação que sublinham estereótipos e normalizam comportamentos discriminatórios.

De regresso a Portugal, foi no passado dia 20 de maio que o Conselho Económico e Social aprovou, em plenário, o «Manual de Linguagem Inclusiva», um documento orientador da comunicação institucional, fundamentado nas orientações normativas nacionais e internacionais acima referidas, entre outras – e que está disponível em formato digital. O objetivo deste documento é o de contribuir para uma linguagem inclusiva que seja «promotora da igual visibilidade e simetria de mulheres e homens». Dificilmente isto pode ser considerado pouco justo, nem tão pouco exige um esforço sobre-humano. Apenas uma pequena dose de boa vontade e a capacidade de se pôr no lugar das outras pessoas faz maravilhas.

Em 2017, Célia Pessegueiro tornou-se a primeira mulher a ser eleita para encabeçar um executivo camarário na Região. No passado dia 6 de junho, apresentou a sua recandidatura à Câmara Municipal da Ponta do Sol. Mas nestas eleições, pelo PS-Madeira, concorrem mais cinco mulheres: Mafalda Gonçalves por Santa Cruz, Olga Fernandes pela Ribeira Brava, Sofia Canha pela Calheta, Helena Freitas por S. Vicente, Tânia Freitas por Santana. Foi por isso que António Costa saudou a audácia do PS-Madeira que, com a liderança de Paulo Cafôfo, se tornou um exemplo no que diz respeito a trabalhar pela Igualdade.

Caminhamos para a Igualdade – não porque consideremos que as mulheres são melhores do que os homens, mas porque consideramos que a representatividade e a pluralidade tornam as nossas comunidades mais justas, mais francas e abertas ao diálogo, mais resilientes porque não leem o mundo a partir de um único ponto de vista. Para o PS-Madeira a igualdade não é letra morta nem discurso de circunstância – é uma questão de acreditar e apostar verdadeiramente em projetos mais amplos, mais abrangentes e mais plurais.

* Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa in Novas Cartas Portuguesas (1972).