Crónicas

Os “paradoxos” da liberdade

1. Disco: “Young Heart”, de Birdy é já um dos favoritos cá de casa. Um álbum lindíssimo, como só os corações atormentados nos podem dar. Viagem aos horizontes de tristeza suave de amores perdidos. E, no fim, fica-nos a aceitação de que o melhor remédio é continuar a procura.

2. Livro: esta semana um dos pequeninos, mas rico em conteúdo. “Da Liberdade de Pensamento e de Expressão”, de John Stuart Mill é um livro imprescindível, onde o filósofo defende a liberdade de expressão quase absoluta. A livre expressão das ideias, sejam elas falsas ou verdadeiras, não deve ser temida nem reprimida, e o direito de opinião não pode ser suprimido nem cerceado por considerações económicas ou morais, mas somente quando cause dano injusto.

3. A liberdade e o livre-arbítrio andam de mãos dadas. O livre arbítrio é o direito natural que cada um de nós tem de tomar as suas próprias decisões e escolher o seu caminho. A liberdade é a capacidade, física e mental, de exercer o livre arbítrio, sendo também um direito natural que nasce connosco. Esta possibilidade de escolher, que muitos consideram não existir, pois somos sempre condicionados por algo, é intrínseca a cada um de nós. Perante os mesmos factos e contingências, cada qual escolhe de maneira diferente porque, como escreveu Ortega y Gasset, “o homem é o homem e a sua circunstância”.

Podemos começar por categorizar a liberdade em três tipologias. Todos temos a “liberdade de…”, somos “livres para…” e somos “livres para ser…”. Somos condicionados pelo meio e pela sociedade que integramos, daí a “liberdade de…”. Somos “livres para” fazermos o que quisermos fazer. E somos “livres para ser” o que quisermos.

Podemos também dividir a liberdade em dois tipos, como se dois polos de energia fossem: a liberdade positiva e a liberdade negativa. A liberdade negativa tem a ver com restrições, com condicionamentos, com impossibilidades. Somos livres para fumar, o que significa que ninguém tem o direito de nos impedir de fazê-lo, no entanto, se fumamos por vício então, o acto de fumar, não é positivamente livre. A liberdade positiva refere-se à liberdade de fazer ou de ser. Tem a ver com a capacidade de expressar autodomínio, capacitação e autenticidade. Um viciado pode estar livre de restrições, mas o vício pode prejudicar a liberdade de expressar a autenticidade da sua identidade. As liberdades negativas respondem a perguntas do tipo: “posso fazer isto?”. Em contraste, as liberdades positivas respondem a perguntas do tipo: “sou capaz de perceber o significado das minhas acções?”; ou “as minhas acções reflectem a minha identidade?”

Todos gostamos de nos vermos como donos do nosso destino. Que temos a liberdade de exercer o nosso livre arbítrio. No entanto, somos condicionados por determinantes de ordem política, ideológica, social, económica e psicológica, que diminuem os parâmetros da liberdade.

A habilidade de pensar, de decidir e de viver a nossa versão de vida, quando isso é possível, permite que nos sintamos fortes e dignos. Escolhemos o nosso caminho e as batalhas a travar. Mas falar da capacidade de decidirmos o que é melhor para nós, não tem a ver com a possibilidade de levarmos essa decisão até ao fim, se nos faltarem os recursos para tal. Novamente as malditas condicionantes externas.

A liberdade como uma força produtiva maravilhosa. Olhemos seja por que prisma for, é a ambição pela qual vale a pena lutar e o princípio que vale a pena proteger. O que esquecemos, no entanto, é que, por mais forte que seja a luz da liberdade, há também uma sombra; é o nosso maior valor, mas também encerra um inimigo poderosíssimo.

A liberdade, em grande parte, permite-nos correr, procurar o que ambicionamos, receber a recompensa do que investimos e sofrer quando falhamos. Mas o que acontece quando as pessoas não querem nada disto? Quando renegam a liberdade e entregam, por diversas razões, a capacidade de escolher nas mãos de outros?

Ao longo da história foram imensos os momentos em que a privação da liberdade recebeu um suspiro de alívio, por parte de quem dela prescindia. Muitas das vezes, trocou-se a soberania pessoal por segurança. A submissão tornada forma de libertação. Assim se abrem as portas ao totalitarismo. A submissão à tirania, para evitar sofrer as consequências do poder da escolha individual. O indivíduo é engolido pelas massas, o “eu” desaparece no meio de um “nós” padronizado. A autocracia, seja ela de direita ou de esquerda, na sua busca por “projectos colectivos” determina a dissolução do individual numa amálgama determinista de um organismo enorme: o Estado.

São muitos os que receiam o que fazer com a sua liberdade. Preferem o autoritarismo à responsabilidade, o controlo das suas vidas em mãos alheias à dignidade da escolha. Eis um paradoxo da liberdade.

E o que dizer da liberdade que cedemos, diariamente, para termos liberdade? Cedemo-la ao grupo, à lei, à segurança, aos que connosco vivem, a tudo o que condiciona a nossa vida em grupo. Para termos liberdade, temos de perder alguma dela. Não é mais um paradoxo?

E o paradoxo descrito por Popper? “(…) a liberdade no sentido de ausência de qualquer controle restritivo leva a uma contenção muito grande, uma vez que torna o agressor livre para escravizar os mais fracos”.

A utopia devia ser, para todos, a capacitação de podermos controlar a nossa via e sermos os autores da nossa própria existência. Escolher livremente e ser responsável único por essas decisões. Sermos os donos das nossas escolhas. Ou seja, viver em liberdade.

4. Como tão bem nota José Guilherme Merquior, são várias as etapas na procura pela liberdade. A primeira é a liberdade contra a opressão. A segunda, a liberdade de participação política, a criação da democracia ateniense. A terceira, a liberdade de consciência, alcançada na Europa como resultado da Reforma e das guerras religiosas. A quarta, é a liberdade de autorrealização, proporcionada pela definição dos direitos humanos, pelo constitucionalismo e pela economia liberal. Os escritos de Locke sobre os direitos humanos, de Montesquieu sobre a divisão de poderes e de Rousseau sobre o contrato democrático, são a base que sustenta a liberdade que vivemos em democracia.

5. Quando morrer gostava de ter uma lápide a dizer: aqui jaz um homem livre. Não serei merecedor de tal. Como todas as pessoas, também eu abdico de muita da minha liberdade. A grande diferença é que alguns de nós temos consciência disso e outros, infelizmente, não só desbaratam a liberdade que têm, como a oferecem em troca de coisa nenhuma.

6. Como era bom que os nossos governos, de cá e de lá, fizessem uma requisição civil de bom senso…

7. “Quem, portanto, não ama a solidão, também não ama a liberdade: apenas quando se está só é que se está livre [...] Cada um fugirá, suportará ou amará a solidão na proporção exacta do valor da sua personalidade. Pois, na solidão, o indivíduo mesquinho sente toda a sua mesquinhez, o grande espírito, toda a sua grandeza; numa palavra: cada um sente o que é.” - Schopenhauer