Crónicas

Dádivas que mostram outras dádivas

Já falei aqui em parte do percurso de Marcelo Fernandes, madeirense, natural da Ribeira Brava, que sai da Madeira com dezoito anos em busca de uma vida melhor e para escapar ao serviço militar, rumando à Venezuela em 1957. Pouco tempo antes casa-se com Eugénia, quando esta tinha então dezasseis anos. Quando o marido parte, (dois meses e dezanove dias após o casamento), Eugénia estava grávida. Marcelo vai inicialmente para Caracas, (onde se encontrava o cunhado João), montam uma venda com David (outro familiar), a qual se incendeia, rumando então para Niterói, Brasil. Ali, Marcelo monta uma nova mercearia. Eugénia esteve portanto longe do marido durante cerca de três anos, de 1957 a 1960, (a separação entre casais, entre famílias nucleares é um aspeto que surge frequentemente nas narrativas migratórias deste período e de períodos anteriores a este), permanecendo durante esse período na Madeira com o filho pequeno de ambos, entretanto nascido, de nome José Manuel.

No período em que Eugénia permaneceu na Madeira mas em que Marcelo se encontrava na Venezuela, o casal terá trocado entre si centenas de cartas (“num único ano chegaram a ser cento e quarenta”, disse-me Eugénia). Eugénia vai destruir a totalidade dessas cartas após a sua chegada a Niterói, em 1960, mas não destrói as fotografias que ocasionalmente as acompanhavam, tais como as que aqui reproduzimos. Com o duplo estatuto de souvenir e oferenda, as fotografias parecem ter sido objeto de uma particular demanda nas correspondências amorosas de casais separados provisoriamente; foram meios para estes melhor se imaginarem como elementos de uma experiência e cenário conjuntos. Décadas depois, essas mesmas imagens tornaram-se mementos e marcos icónicos da narrativa familiar, os quais se ativam quando as mesmas são revisitadas.

No verso desta foto que envia ao marido da Madeira, Eugénia revela temer pela vida do filho Manuel, que na época estaria doente, e faz menção a uma pulseira anteriormente oferecida por Marcelo, enviada já do Brasil, e que está visível na imagem no pulso da criança. Antes de ser memória substanciada no papel de um episódio da grande narrativa familiar, a fotografia é aqui e por si só um souvenir. Mas é também representação privilegiada das trocas materiais e afetivas em jogo nos percursos migrantes, prova dos trânsitos e usos de outros souvenirs como esta pulseira: ou seja, dádiva que comprova o apreço pelas dádivas e, nesse sentido, contra-dádiva.

Como referi na passada semana, Eugénia e o filho embarcam no navio Vera Cruz em 1960 rumo a Niterói, juntamente com a mãe de Eugénia, Augusta, uma das suas irmãs, Maria de Jesus, e dois dos irmãos, Manoel Fernandes e José Fernandes, este último acompanhado da esposa, Conceição. Dos poucos pertences que trazem da Madeira, constam algumas fotografias. Ao chegarem ao Brasil, Eugénia e a família reencontram os parentes e também as fotografias anteriormente postas em viagem, abertas a uma destinerrância e aparentemente bem encaminhadas.

E é esse traço material que desde então ainda se encontra mais ou menos em trânsito pelas eventuais mudanças de casa ou transmissão aos descendentes, que nos permite em parte mostrá-las hoje, aqui, e exercer uma escrita a partir da (sua) memória e a partir do contexto histórico em que foram produzidas, em que foram enviadas.