Crónicas

“Estais Cegos”

1. Disco: está aí o último Coldplay, “Music Of The Spheres”. Numa espécie de viagem ao espaço exterior que transportamos em nós, os Coldplay são Coldplay. Pop limpa e bem montada com algumas músicas orelhudas. Umas colaborações e pronto. Um disco para ouvir q.b., pois não merece muito mais do que isso.

2. Livro: “Sermões, Tomo 1 e 2”, Padre António Vieira.

3. Na minha mesa de cabeceira moram dois livros. De vez em quando, abro um deles ao acaso e leio um pouco. Uma espécie de Bíblia, escrita por aquele que é, para mim, o maior escritor da língua portuguesa. O vocabulário rico, a mestria da construção frásica, a clareza do pensamento, a sua particular visão da moral e da ética, a intemporalidade da análise, as metáforas, fazem de Vieira quem melhor tratou esta língua tão destratada.

Já uma vez lhe peguei na estrutura de um texto e destruí-o (literalmente) com uma adaptação. Não resisto a fazê-lo de novo. O sermão dá pelo nome de “A cegueira da governação” e tem uma actualidade inultrapassável.

“Presidentes, Secretários, Directores, Deputados e Assessores: vedes a ruína da nossa Madeira, vedes as aflições e misérias dos madeirenses, vedes as violências, vedes as opressões, vedes os impostos, vedes a pobreza, vedes a fome, vedes o desemprego, vedes as falências, vedes a miséria, vedes os sem-abrigo, vedes a assolação de tudo? Ou o vedes, ou o não vedes. Se o vedes como o não remediais? E se o não remediais, como o vedes? Estais cegos.

Políticos, Deputados, grandes, maiores, supremos, bestiais, e vós, ó Senhores de todas as sabedorias: vedes as calamidades universais e particulares, vedes os destroços, vedes o descaimento, vedes o desprezo pela Lei, vedes a justiça de mãos amarradas, vedes o abuso dos costumes, vedes os pecados públicos, vedes os escândalos, vedes as negociatas, vedes os sacrilégios, vedes a falta de futuro, vedes a condenação e perda, dentro e fora da comunidade? Ou o vedes, ou não o vedes. Se o vedes, como não o remediais, e se o não remediais, como o vedes? Estais cegos.

Presidentes e Secretários disto e daquilo, Edis e Vedores, Deputados, Tribunos e Vereadores: vedes as obrigações que se descarregam sobre o vosso cuidado, vedes o peso que carrega sobre as vossas consciências, vedes as desatenções do governo, vedes as injustiças, vedes os roubos, vedes os descaminhos, vedes os enredos, vedes as dilações, vedes os subornos, vedes as potências dos grandes e as vexações dos pequenos, vedes as lágrimas dos pobres, os clamores e gemidos de todos? Ou o vedes, ou o não vedes. Se o vedes, como o não remediais? E se o não remediais, como o vedes? Estais cegos.”

4. Polarização, tribalismo partidarizado e sectarismo. Não é preciso muito mais para descrever o ambiente político em que vivemos. Alimentamos isto nas eleições que mais não passam de meros actos eleitorais, travestidos de democracia. Não passou um mês sobre um processo eleitoral onde se assistiu a coisas inadmissíveis.

A erosão, quando não a morte, do nosso senso comum, impede-nos de responder a alguns dos desafios mais difíceis e urgentes que enfrentamos. Se o problema da nossa democracia, a sua doença, reside em cada um de nós, é aí que temos de tratar o problema. Temos de encontrar um caminho que passe pela estruturação do modo como vemos e pensamos as coisas. Precisamos controlar melhor o nosso estado emocional e mental, não vendo fantasmas em todo o lado, um controle que deixe de dividir as coisas entre o “eles” e o “nós”. Em suma, o nosso futuro depende, também, do nosso estado psicológico.

Andamos irritáveis, ansiosos, híper-vigilantes. Não conseguimos o exercício da alteridade que nos permite entender e pormo-nos na pele do outro. Passamos a vida a arranjar desculpas, pois desresponsabilizamo-nos de tudo. Não sabemos assumir a responsabilidade de nada. Somos uma sociedade doente, logo não podemos querer ter um tecido político partidário que o não seja…

Então o que fazer para ultrapassar esta situação que nos radicaliza, divide, e desune? Um primeiro passo seria reconhecer que o mal existe. Que o mal está em cada um de nós e que daí perpassa para o todo onde nos integramos.

As nossas depressões e ansiedades que achamos, sempre, que têm a ver com a nossa maneira de ser e de estar, e que se resolvem com o tomar de umas pastilhas e o ir a umas consultas. Claro que passa por isso. Mas não se esgota aí. O falhanço da esperança que depositamos naqueles que nos governam, as políticas que sentimos que nos prejudicam, as questões da má gestão, são também factores potenciadores de ansiedade e depressão. E muitas vezes culpabilizamo-nos por isso.

E essas coisas podem ser exploradas no sentido de beneficiar uns em detrimento de outros. Os exemplos são inúmeros, por esse mundo fora, de onde se destaca o escândalo do Cambridge Analitics, uma explosiva interacção entre a psicologia e as redes sociais, que permitiu que milhões fossem condicionados a observar o mundo de uma determinada forma.

A cura está na cidadania. Na criação de cidadãos que consigam gerir, com inteligência emocional, os seus estados de espírito, que controlem as suas emoções. Cidadãos que façam da empatia a regra fundamental, e que não vejam no outro uma qualquer espécie de inimigo. Só assim conseguiremos compartilhar identidades e fins que a todos, de uma maneira ou de outra, sejam realizadores.

Temos de parar para racionalizar o que sentimos. Não deixar que o medo nos domine, porque é isso que induz ao tribalismo, à polarização, ao sectarismo, ao populismo salvífico. O racionalizar impede a resposta pelo instinto que é sempre uma resposta defensiva, que impede o entendimento.

Repito, a cura está na cidadania. No seu exercício, no empenho no bem comum. A impotência combate-se de frente. Não há impossíveis. Ceder é cair na inanição. No nada fazer. No deixar que outros decidam por nós.

Temos de assumir a pertença. O fazer parte. Ser solução ao invés de ser problema. Rejeitar a solidão e o afastamento do outro, pois estes são caminhos para os extremismos.

Não fazer nada, é abrir as portas ao totalitarismo e ao autoritarismo.

5. “The European Week of Regions and Cities”, e o maior evento anual europeu, dedicado à política de coesão. Uma plataforma única de comunicação em rede, reunindo regiões e cidades de toda a Europa, contando com a participação de políticos, investidores, administradores, especialistas e académicos. Decorreu na passada semana a sua 19.ª edição e, nos últimos 18 anos, muito tem efectuado para promover o aprendizado de políticas e o intercâmbio de boas práticas. Presencialmente, estiveram cerca de 1100 participantes. Digitalmente, foram milhares. Aprender com a experiência dos outros, é o moto do encontro.

Esta 19.ª edição, sob o tema “Juntos pela Recuperação”, contou com cerca de 300 sessões e eventos paralelos, muitos deles decorreram virtualmente. Tive o prazer de ter assistido a alguns aproveitando a oportunidade de colher ensinamentos sobre boas práticas, testadas e com resultados, sobre temas como: crescimento e modelos de criação de empregos, políticas de coesão que ajudam na criação de riqueza e provam a importância dos níveis local e regional para uma boa governação europeia.

Destaco um “workshop”: “Regiões e Municípios para uma transição verde”, com a participação do presidente da Câmara de Braga, Ricardo Rio, e com a vice-presidente da Câmara de Budapeste.

Até Vasco Cordeiro, ex-presidente do Governo Regional dos Açores, lá esteve.

Ali havia conhecimento, saber, ciência. Coisas que parece que temos para dar e para vender, não é? Regionalmente não ouvi falar em nada disto. A única coisa que encontrei foi uma presença numa feira, que se realiza ao mesmo tempo, onde estiveram presentes o IDR e um “stand” de uma coisa chamada Madeira Resilient Region (que nem sabia existir) ligada ao POSEUR . Se alguém me poder informar sobre a participação oficial da Madeira, para além disto, neste importante evento, fico agradecido.