Crónicas

«Não há em mim nenhuma sabedoria, pequena ou grande»

Este é um momento em que precisamos convergir e, em conjunto, precisamos de respostas urgentes às necessidades mais prementes de todo o setor cultural

Há sensivelmente um ano comecei a partilhar estas minhas reflexões no Diário de Notícias. O primeiro texto incidiu sobre o facto de sermos a segunda Região do País com a taxa mais alta de risco de pobreza. Na altura, estava longe de imaginar que, mês e meio depois, teria início a maior crise por que já passamos nos últimos anos. Nem fazia ideia de que, passado um ano, teríamos mais de vinte mil pessoas desempregadas na Região, quase cinco mil pessoas mais do que no início de 2020. A crise económica e social originada pelas medidas de contenção da pandemia é, infelizmente, uma realidade um pouco por toda a parte. Mas uma Região como a nossa, com tanto peso do setor do Turismo, é especialmente afetada por essas consequências.

Um dos setores profundamente afetado pelas consequências da pandemia é o setor cultural e das artes, para o qual tendemos a não olhar com a seriedade que merece. Os cancelamentos e adiamentos de espetáculos ou a redução drástica da capacidade de bilheteira tornam incomportáveis as despesas com a produção dos espetáculos. As galerias veem a sua programação afetada, as empresas que operam no setor – e que movimenta muito mais pessoas do que as que são visíveis ao nosso olhar em cima dos palcos – enfrentam grandes dificuldades para conseguirem pagar salários. No que diz respeito à música, uma boa parte dos e das artistas regionais também depende do setor do turismo, muitas vezes com contratos de trabalho muito precários ou apenas como prestadores de serviços, pelo que ficaram pura e simplesmente sem qualquer rendimento.

Desde março o Governo Regional criou duas linhas de apoio ao setor. A primeira, com uma verba de 200 mil euros, foi lançada em abril e desconfinou os resultados em julho. Em setembro o Presidente do Governo manifestou a sua satisfação pelo facto de a verba não ter sido esgotada pelas candidaturas, dando a ideia de que no setor estava tudo bem. Esqueceu-se de que há quem trabalhe em exclusivo na cultura, pelo que o critério que exclui quem opera com fins lucrativos deixou de fora uma parte considerável do setor.

Em novembro, foi lançada uma segunda linha, dotada de 150 mil euros, e cujo prazo de candidatura decorreu até o dia nove de dezembro. Até ontem, dia 22 de janeiro, ainda não eram conhecidos os resultados dessa linha. Mais de mês e meio depois do fecho das candidaturas, o setor continua à espera de saber quem tem direito a este apoio de emergência. E a exclusão de quem opera com fins lucrativos continua a fazer parte desta segunda linha. Tal como a redação dos termos da resolução não é explícita relativamente aos casos em que a atividade foi simplesmente cancelada. Esperemos que a falta de clareza no texto não signifique exclusões absurdas.

Estou em crer que o objetivo de ambas as linhas foi o de efetivamente prestar auxílio ao setor; no entanto, há demasiadas situações que não foram equacionadas e que deixam de fora pessoas que estão completamente desamparadas. Por exemplo, os motivos para uma pessoa singular ter dívidas à Segurança Social ou às Finanças. A forma como muitas pessoas trabalham precariamente a recibos verdes é, muitas vezes, determinante para essas situações. E estas pessoas, que em condições normais sobrevivem e tentam manter-se à tona, foram as primeiras a ser atingidas, sem apelo nem agravo.

Enquanto elemento do grupo parlamentar do PS-Madeira, fui porta-voz de uma proposta que propunha a criação de um apoio de emergência que facultasse, de forma transparente, imparcial e célere, o acesso a fundos que permitissem às entidades e aos operadores culturais e artísticos, algum fôlego para atravessar os próximos meses. Foi recusada pela maioria parlamentar PSD/CDS, com a justificação de que os apoios já existiam e que a proposta só revelava ignorância relativamente aos apoios existentes. Mas foi exatamente por sabermos como os apoios existentes têm sido insuficientes e hipotecam o futuro do setor é que avançamos com a proposta. Porque as linhas de apoio extraordinário são morosas, porque o dinheiro tarda e não acompanha o ritmo das restrições – necessárias, mas que asfixiam o setor. Neste momento, temos artistas que, para conseguirem sobreviver, estão a vender o seu material, isto é, as ferramentas necessárias para a sua produção criativa. Outros, porque os materiais são caros, não conseguem simplesmente investir na criação de novas obras (basta pensar nas artes plásticas).

Na nossa ótica, este é um momento em que precisamos convergir e, em conjunto, precisamos de respostas urgentes às necessidades mais prementes de todo o setor cultural – e não apenas de algumas entidades ou alguns operadores. Precisamos zelar pela sobrevivência de quem nos abre continuadamente possíveis e constitui matéria viva do nosso presente e que será a nossa história amanhã.

Quando estou prestes a fechar este texto, leio uma resolução publicada no dia 20 que prorroga a decisão de reduzir a lotação dos espaços culturais a apenas cinco espetadores/as. E houve possibilidade de emendar a mão relativamente a uma decisão que não está devidamente justificada, pelo menos quando comparada com outras situações. Relembro, continuamos sem conhecer o critério científico que fundamenta que os transportes públicos tenham uma lotação máxima de dois terços (e que os autocarros circulem com demasiadas pessoas, sem o devido distanciamento social), ou que as cerimónias religiosas mantenham a lotação de 50% da sua capacidade de lotação mas que um espaço como o Teatro Baltazar Dias, com cerca de quatrocentos lugares, inclusivamente em frisas e camarotes, seja obrigado a reduzir a sua lotação para cinco pessoas.

O título deste texto é uma citação extraída do texto «Apologia de Sócrates», de Platão, e julgo que espelha bem a postura que a nossa realidade exige. Cada vez mais, um ponto de partida cético, a consciência de que precisamos conhecer mais porque tendencialmente não conseguimos agir sempre bem e prever todos os obstáculos com que somos diariamente desafiados/as perante uma situação absolutamente extraordinária e para a qual não existe propriamente um manual de procedimentos. E isto é válido para o setor cultural, mas também para todos os outros setores, o da saúde inclusive. Começar a ter controlo sobre a situação é admitir que não é controlável, que precisamos conhecer mais e melhor, que precisamos refletir e trabalhar em rede. E isso exige abertura, diálogo, perceber os problemas a partir de vários pontos de vista – devidamente creditados e sustentados. A bem da (cultura na) Região.

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