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Crónicas

Bloquear o LIDL: Manual de Sobrevivência da Madeira Nova

1. Bloquear o LIDL: Manual de Sobrevivência da Madeira Nova.
Numa altura em que os borra-botas do sistema, que mais não são do que a voz do dono, se sentem incomodados sempre que se fala neste assunto, é bom que fique claro, que para os madeirenses que têm o custo de vida mais caro do país, a entrada do LIDL no mercado regional era aguardada com uma espécie de fé laica, daquelas que se nutrem não de dogmas, mas de boletins económicos e folhetos de descontos. Para muitos madeirenses, não se tratava apenas da vinda de mais um supermercado; era, antes de tudo, a promessa de um alívio, um sopro de ar fresco numa ilha onde o preço das coisas escalava com a leveza cruel da humidade marinha. O LIDL, com a sua reputação de produtos baratos, embalagens pragmáticas e eficiência teutónica, surgia no imaginário colectivo como o possível agente de um abalo benfazejo, capaz de corrigir distorções e desafiar os monopólios sorridentes das cadeias já instaladas, confortavelmente sentadas sobre décadas de ausência de alternativa.

Em teoria, e a teoria por vezes tem razão, a presença do LIDL permitiria introduzir concorrência real no mercado alimentar da Madeira. A mera expectativa da sua chegada causa já, sem sequer um tijolo assentado, movimentações cautelosas das outras grandes insígnias: novas lojas inauguradas e outras anunciadas à pressa, campanhas publicitárias mais agressivas, e até algum súbito interesse por produtores locais que até então mal eram ouvidos, quanto mais pagos a tempo. Isto porque sabiam o que vinha aí: o LIDL não é uma superfície qualquer, é uma máquina que opera com margens apertadas e custos controlados, cujo segredo está menos na exuberância das vitrinas e mais na frieza do cálculo, o que, num mercado pequeno e insular como o da Madeira, não deixa de ser uma vantagem para o consumidor.

O impacto imediato seria nos preços. Com a presença de uma cadeia com poder negocial europeu, capaz de oferecer bens de primeira necessidade a preços substancialmente inferiores, os restantes operadores seriam forçados a reposicionar-se. Acabava-se, em tese, com a cartelização informal que tantos consumidores denunciavam em voz baixa, nas filas da caixa e nas conversas de café. E com isso, ganhariam todos os que vivem do salário mínimo, os pensionistas, os estudantes e as famílias inteiras que há muito aprenderam a fazer contas com a disciplina de um monge cisterciense. O LIDL surgia assim como um corrector do mercado, não por imposição do Estado, mas pela simples força da concorrência. Era o liberalismo aplicado ao carrinho de compras.

Depois, havia o efeito na produção regional. Os dirigentes do LIDL asseguraram que parte do investimento, cerca de vinte milhões de euros, seria canalizado directamente para compras a produtores e fornecedores locais. Pela primeira vez, muitos agricultores madeirenses poderiam ver os seus produtos integrados numa cadeia de distribuição que não os empurrava para os cantos poeirentos das prateleiras. O bolo de mel, a banana, o vinho, os produtos hortícolas cultivados em socalcos laboriosos, tudo isto podia, em princípio, ser valorizado e exposto lado a lado com bens importados, não como curiosidade étnica, mas como produto de qualidade. E mais ainda: podia dar-se o milagre, raro, de produtos regionais serem exportados através da rede do LIDL para fora da ilha. Imagine-se, em Frankfurt ou Marselha, alguém a comprar bolo de caco embalado em vácuo, e a Madeira a entrar assim, por via lateral e económica, no mapa mental dos consumidores europeus.

E havia ainda a questão da escala. Poucos o sabiam, mas o LIDL possuía a sua própria frota de navios. Sim, navios. Cargueiros controlados directamente pela cadeia, que garantem o abastecimento regular das ilhas Canárias e que, com a entrada na Madeira, podiam ser utilizados para criar uma ponte marítima eficiente entre os dois arquipélagos, consolidando rotas logísticas, diminuindo custos de transporte e assegurando uma cadeia de fornecimento estável, previsível e menos dependente de operadores terceiros ou do humor de quem controla o Porto do Caniçal. Esta capacidade própria de movimentação marítima colocava o LIDL numa posição única: podia abastecer as lojas insulares com produtos frescos, em quantidade, e com custos competitivos, algo que nenhum outro operador conseguia fazer com tanta autonomia e economia de escala. A Madeira deixaria de ser o fim da linha para ser mais uma paragem integrada numa rede logística transatlântica, e isso mudava tudo.

Acrescentem-se os empregos. A abertura das quatro lojas inicialmente previstas implicaria, desde logo, cerca de cento e cinquenta empregos directos. Empregos que, diga-se, não são apenas estatística: são salários pagos, contribuições para a segurança social, jovens com formação e velhos com esperança. São também horários rotativos, contratos com regras, e a possibilidade de ascensão profissional para quem, porventura, não teve acesso ao ensino superior, mas tem garra e vontade. A estes somam-se os empregos indirectos, nos transportes, na logística, na limpeza, nos fornecedores locais. Toda uma cadeia de pequenas engrenagens que se põe em movimento quando um investimento sério se instala.

Mas, como quase tudo na Madeira, o caminho não foi, nem está a ser, livre de tropeços e obstáculos habilmente vestidos de legalidade. À medida que o projecto avançava no papel, começaram a surgir entraves discretos e exigências insuspeitas: licenças que tardavam, pareceres contraditórios, alterações ao Plano Director Municipal que exigiam tempo e paciência, e uma estranha sensibilidade urbanística que só parece acordar quando os investimentos vêm de fora. Algumas das localizações propostas pela marca, em zonas urbanas bem localizadas, foram sujeitas a restrições de tráfego, exigência de integração imobiliária ou imposição de critérios que outras superfícies já instaladas nunca tiveram de cumprir. As lojas deixaram de ser apenas espaços comerciais para se tornarem campos de batalha, onde a política local, a protecção encapotada de concorrentes e as velhas redes de influência se entrelaçaram. A própria marca chegou a reorganizar o seu plano de investimentos, empurrando o calendário para a frente, talvez porque, afinal, o que parecia um mercado com fome de concorrência se revelou um labirinto de interesses cruzados e receios mal disfarçados. Havia quem não quisesse perder o conforto do monopólio informal, quem visse na chegada do LIDL não uma oportunidade, mas uma ameaça ao status quo onde poucos ganham muito e muitos pagam caro.

Mas mais do que tudo isto, o LIDL representava um sinal. Um sinal de que a Madeira podia, afinal, atrair investimento externo sem precisar de subsídios chorudos, favores políticos ou artimanhas legais. Que podia ser tratada como mercado viável por uma multinacional com critérios rigorosos e planificação estratégica. Que não era, como tantos temem em surdina, um caso perdido no Atlântico, boa apenas para hotéis de pacote e arraiais. E era também, por contraste, uma oportunidade para os poderes públicos se reencontrarem com a decência. Licenciar ou não licenciar, sim, mas com critérios claros, com transparência, com sentido estratégico. Sem truques. Sem ziguezagues. Sem fantasmas de interesses ocultos.

A entrada do LIDL, se consumada, podia, pois, ser mais do que um facto económico: podia ser um acto simbólico de reconfiguração do mercado, de afirmação do consumidor como sujeito, e não como refém de uma rede limitada e artificialmente cara. Podia ser o início de um tempo novo, em que a economia regional deixasse de girar em circuito fechado e se abrisse a um jogo mais competitivo, mais justo, mais livre. Um tempo em que, finalmente, o madeirense comum pudesse escolher, e escolher bem, sem ter de pagar um preço absurdo pela geografia em que nasceu.

E tudo isto... apenas por causa de um supermercado.

Mas há símbolos que valem mais do que as prateleiras. E se o LIDL conseguir, enfim, abrir as portas que prometeu, talvez mais do que produtos em promoção, traga consigo a prova de que a Madeira ainda é capaz de mudar, mesmo que comece por uma caixa automática e um navio no horizonte.

2. À Laia de Esclarecimento

Desde que comecei a minha actividade política tratei de não me fechar numa bolha de certezas próprias. Construí, pouco a pouco, uma rede de conhecimento: pessoas competentes, com “expertise” em áreas que não domino, que tiveram a paciência e a generosidade de me emprestar o seu tempo e a sua inteligência. Muito pouco do que escrevo passa sem ser filtrado por esse círculo, que não é de conveniência, mas de exigência intelectual. É assim desde o princípio e continuará a ser, porque só um tolo despreza o saber e só um arrogante pensa que chega a algum lado sozinho.