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Crónicas

O princípio da história

Barcelona celebrava o espírito olímpico e as imagens dos jogos passavam, todas as noites à hora do telejornal, a par das outras que mostravam uma Sarajevo esburacada pela guerra, mas as notícias que chegavam do mundo pelo telex da Lusa, cujo papel caía da mesa e se enrolava no chão só me interessavam para o noticiário de hora a hora aos microfones da rádio RJM, o 99.9 FM, que emitia a partir do quarto andar de um prédio da Fernão Ornelas. Das janelas viam-se os telhados da cidade e, mais à frente, ficava o mar que me colocava a muitos quilómetros de todos os acontecimentos importantes do Verão de 1992.

Os de nível mundial que, para a estagiária de óculos na ponta do nariz e cabelos pelas costas, o Verão rodou, pela primeira vez, longe do Lido e do quintal de casa. O centro era ali, entre a redação, os estúdios e todos os sítios onde a agenda do dia me levava. E lá ia a rapariga, pouco mais do que uma adolescente, com um gravador grande, a estender o microfone para ter as declarações dos partidos, as inaugurações e a sentar-se à mesa com os jornalistas, os que percebiam da política e conheciam todas as histórias, sabiam o que era notícia, o que já tinha sido dito e o que ia fazer a manchete do dia seguinte ou abrir o telejornal, à noite.

Eu fazia o que podia, o melhor que sabia para garantir os noticiários da hora do almoço, o da noite e deixar feito para o dia seguinte. Todos os dias lutava para vencer a timidez e o microfone que devolvia uma voz que não parecia a minha. E, à noite, depois do jantar, adormecia cansada do nervoso, do medo do equipamento falhar, mas levantava-me cedo, tomava banho e corria para a rádio, com aquele entusiasmo que só se tem aos 21 anos, aquele que é uma mistura de paixão, de muita ingenuidade e fé numa profissão que, mesmo longe da guerra e dos jogos olímpicos, me abraçava e seduzia, naquela correria pela cidade ou pelas curvas dos caminhos, ilha adentro, em viagens demoradas que, às vezes, era preciso mandar a notícia pelo telefone fixo de um café.

A quase adolescente que eu era espantava-se com quase tudo. A comida que se servia depois do discurso e de se abrir a estrada e também não percebia a alegria do povo, esse que vivia longe de tudo e só ia à cidade na Festa ou em caso de extrema necessidade. Se a visão de Lisboa me fizera sentir um grão na engrenagem, faltava-me perspetiva e idade para entender aquele brilho nos olhos de quem ouvia o discurso, a promessa que ainda ia ser melhor, os madeirenses contra todos, o mundo inteiro se fosse preciso. O Verão estava agitado, havia eleições no horizonte e o governo andava numa espécie de presidência aberta, a visitar os lugares mais escondidos, a sujar os sapatos elegantes e os fatos.

E, na cidade, a oposição respondia como podia, em conferências de imprensa, numa luta que, nesse tempo, era profundamente desigual e todas as vozes que se atreviam a discordar eram elevadas à categoria de heróis da resistência. Os jornalistas mais velhos diziam que o esforço era inglório, não tinha visto como era? As caras, os olhos a brilhar e os aplausos. Um dia talvez, daí a muitos anos, talvez fosse diferente, mas em 1992 era como era. O fim do estágio de três meses, que foi até ao fim de Outubro e apanhou as eleições, mostrou que estavam certos. A assembleia ficou mais ou menos como estava.

No início de Novembro, fiz as malas e apanhei o avião para Lisboa para acabar o curso e com ideias de seguir a vida longe de casa, sem saber que o Verão de 1992 foi um daqueles momentos em que se consegue antever por breves instantes o futuro. A minha vida seria aqui e tudo o que vi, senti e desejei naquele estágio, quando era pouco mais do que uma adolescente foi apenas o princípio da história.