Para haver um mosquito infectado com dengue tem sempre de haver pessoas doentes?
A Direcção Regional da Saúde da Madeira revelou, na sexta-feira à noite, que foi identificado um mosquito infectado com o vírus da dengue no Funchal. Era também garantido que, naquele momento, não existia “casos suspeitos nem confirmados de dengue em humanos na Região". Já neste sábado, o presidente do Governo Regional veio afirmar não haver “razões para alarmes”.
As duas notícias suscitaram um conjunto de reacções e comentários, por parte dos leitores, tendo-os expressado no dnoticias.pt e no Facebook do DIÁRIO.
Vários colocam em causa a veracidade do que é afirmado, em dupla perspectiva: dizem que para haver um mosquito infectado tem de haver pessoas doentes e que já há casos de gente doente que são escondidos, com o objectivo de evitar repercussões negativas no turismo da ilha.
Será verdade o que afirmam e existirá algum fundamento que leve a achar que há casos escondidos?
A verificação da veracidade das afirmações vai incidir em dois aspectos: é possível haver mosquitos infectados sem pessoas doentes? Já existem pessoas doentes com dengue, na Madeira, e os casos estão a ser escondidos?
Vejamos o primeiro aspecto, com base em informação institucional (DGS e IASAÚDE/DRS) e em estudos de campos, além de esclarecimento da Autoridade Regional de Saúde, Maurício Melim. Nesta parte não vamos verificar como é que os humanos são infectados, mas como é que os vírus o são e como são transmissores.
A dengue é causada pelo vírus da dengue (DENV), que precisa de um hospedeiro vertebrado (normalmente humanos ou primatas) para completar seu ciclo. No entanto, o vírus pode ser mantido em populações de mosquitos por algum tempo por meio da transmissão vertical (de mosquito fêmea para seus ovos). Isso significa que, em teoria, a dengue poderia persistir em comunidades de mosquitos sem infectar humanos por um certo período.
No entanto, os estudos indicam que a transmissão vertical do vírus é muito pouco eficiente e não representa risco epidemiológico significativo para os humanos (https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC4031614/?utm_source=chatgpt.com; https://repositorio.usp.br/item/002991557?utm_source=chatgpt.com; https://pt-br.worldmosquitoprogram.org/en/learn/scientific-publications/assessing-vertical-transmission-potential-dengue-virus-field?utm_source=chatgpt.com).
Por esta via, e em condições ópitmas, a transmissão vertical pode sustentar o vírus por várias semanas ou até meses, sem a existência de um humano. No entanto, com o tempo, sem amplificação em humanos, a carga viral tende a diminuir, tornando a manutenção do vírus em populações apenas de mosquitos instável e eventualmente levando à sua extinção.”
Ora, para o mosquito transmitir a doença tem de ter uma boa carga viral, o que tendencialmente não é o caso, na transmissão vertical.
Em síntese, sim, é possível haver mosquitos infectados com o dengue, sem haver humanos infectados, mas num tempo de meses (ainda que possam ser mais de 12), não de anos .
Esta situação seria a desejável para explicar a detecção de um mosquito infectado no Funchal, mas não é a mais provável.
A situação com maior probabilidade é que o mosquito tenha picado alguém infectado e sugado sangue com o vírus da dengue. Essa transmissão pode ser recente ou já com algum tempo (semanas). O IASAÚDE explica o processo: “Os mosquitos adquirem o vírus quando se alimentam de um hospedeiro em estado de virémia, após o que (numa espécie suscetível) o vírus infecta vários tecidos, incluindo as glândulas salivares. Apesar de poder levar semanas (e muitas refeições sanguíneas) para um mosquito se tornar infecioso, os mosquitos ficam infectados para a vida. As novas infecções em humanos ocorrem quando a saliva que contém o vírus é injectada num hospedeiro não imune durante refeições sanguíneas subsequentes. O período de incubação extrínseco, ou seja, o tempo necessário para o mosquito se tornar infeccioso, é cerca de 10 dias a 27°C.”
Assim, o mosquito infectado pode, por exemplo, ter-se alimentado do sangue de alguém vindo de fora da Região, por exemplo da América do Sul, onde é prevalente. Esse alguém pode já nem se encontrar na Madeira ou pode ainda estar e não ter sinais nem sintomas da doença. Este é o cenário mais preocupante, pois pode originar transmissões a outras pessoas e originar um surto
Vejamos agora a questão dos casos escondidos.
Os mosquitos apanhados na rede de vigilância na Madeira são enviados para o continente, para o Instituto Dr. Ricardo Jorge – Instituto Nacional de Saúde Pública. É lá que o diagnóstico é feito e foi isso que aconteceu. Aconteceu agora e não antes. A expectativa reside nos mosquitos a enviar na próxima semana. Se houver mais infectados, poderá significar que a origem do vírus se encontra presente na Região e que poderá haver um surto.
Todos estes casos são de notificação obrigatória, assim como os casos de doentes infectados com o vírus. Isso, até agora, não aconteceu.
Ainda assim, questionámos junto de profissionais de saúde do SESARAM, nomeadamente, alguns que prestam serviços nas urgências do Hospital Dr. Nélio Mendonça, e todos nos garantiram que não há doentes diagnosticados até este momento. Se alguém infectado esteve mum serviço do SESARAM não foi diagnosticado com tendo dengue.
Com a identificação de um mosquito infectado, agora, os profissionais ficam em alerta redobrada, o que pode ajudar na rapidez do diagnóstico de dengue.
Assim, como se verifica, é falso que tenha sempre que existir (pelo menos) uma pessoa doente/infectada para um mosquito estar infectado (ainda que seja o que acontece na esmagadora maioria dos casos) e também é falso que existem casos de doentes diagnosticados com dengue e que estão a ser escondidos por causa do turismo.
No entanto, é necessário estar atento e todos os cidadãos tomarem as medidas de combate ao mosquito existente na Madeira e que transmite a dengue e, nem assim, é garantido que não se venha a ter um surto em breve. É algo real, ainda que, no Inverno, as condições de propagação do mosquito não sejam tão boas como nas de Verão.
O mosquito Aedes Aegypti foi detactado, pela primeira vez, na Madeira em 2005, pelo entomólogo Ruben Capela. Em 2012/2013 houve um surto de dengue na Madeira com mais de dois mil casos. Durou 26 semanas.