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A estupidez humana terá limites?

A pergunta sobre se a “estupidez humana” tem limites é, em si mesma, um convite a refletir sobre a condição humana, a nossa relação com o mundo natural e o modo como, tantas vezes, repetimos erros que sabemos ser evitáveis. No contexto da Região Autónoma da Madeira (RAM), um território insular exíguo de beleza singular, onde a montanha se debruça sobre o mar e onde o equilíbrio ecológico é, ao mesmo tempo, frágil e resiliente, esta reflexão ganha um peso particular.

A “estupidez”, entendida filosoficamente, não como insulto, mas como a incapacidade de agir em conformidade com o conhecimento disponível, parece manifestar-se sobretudo quando falhamos em perceber as consequências das nossas ações. A natureza dá sinais, ora subtis, ora violentos, e o ser humano, cego pela urgência do imediato, pela ambição ou pela negligência, insiste em ignorá-los. Filósofos como Kant ou Arendt diriam que a “estupidez” humana não é falta de inteligência, mas falta de reflexão. É a incapacidade de ligar causa e consequência, de reconhecer o impacto das nossas ações no tecido maior da vida. Na RAM, essa desconexão manifesta-se quando se corta, queima ou fragmenta a Laurissilva, não por necessidade vital, mas por conveniência, descuido ou desenvolvimento desordenado.

A Laurissilva não é apenas floresta, é memória viva da Terra, um bioma que resistiu a eras glaciais e que guarda uma biodiversidade única no planeta. A sua destruição não é apenas um atentado ecológico: é um empobrecimento moral, um ato de rutura com aquilo que nos antecede e que deve sobreviver-nos. Sendo a RAM frequentemente descrita como um jardim, dever-se-ia interiorizar que os jardins exigem cuidado, e que esta ilha sempre viveu num equilíbrio delicado entre montanha, clima húmido, declives abruptos e ocupação humana. A Laurissilva é um género de uma Deusa, que protege os solos, regula a água, cria microclimas e alimenta rios invisíveis que sustentam a vida humana. Ignorar isto, construindo onde a terra não aguenta, alterando linhas de água, permitindo invasoras, negligenciando práticas de prevenção, ou permitindo uma carga humana excessiva, é uma forma de “estupidez” no sentido filosófico, isto é, um esquecimento daquilo que nos mantém vivos.

Esperar que o limite se atinja/revele pela catástrofe é, precisamente, o que define a imprudência humana. O verdadeiro limite deveria vir antes, da consciência dos responsáveis pelo cuidado da floresta. Por vezes, parece existir uma crença, quase ingénua, de que a natureza, generosa como é, suportará tudo. Mas a natureza não é infinita; é um sistema vivo com os seus limites. Filosoficamente, poderíamos dizer que o verdadeiro problema não é a “estupidez” em si, mas a desconexão. O ser humano contemporâneo, mesmo num arquipélago tão marcado pela presença da floresta, do mar e do clima, vive muitas vezes afastado dos ritmos naturais que outrora moldavam as suas escolhas. Esta desconexão alimenta decisões que sacrificam o longo prazo, em nome do conforto momentâneo. Contudo, não devemos cair no pessimismo absoluto.

Se a estupidez humana parece, por vezes, ilimitada na sua capacidade de repetir erros, a inteligência humana não é menos poderosa na sua capacidade de aprender, corrigir e regenerar. O desafio filosófico é este: compreender que a natureza não é um recurso, mas uma condição da nossa existência. Que a floresta Laurissilva, Património Mundial, não é apenas um cenário turístico, mas um testemunho de vida ancestral que exige respeito e proteção e que cada descuido, nomeadamente com o fogo ou sujeitá-la a exagerada/desordenada carga humana, contribui para um encadeamento que poderá ser irreversível. Tarda em compreendermos, que destruir a natureza é destruir-nos a nós próprios. Em última análise, a verdadeira sabedoria estará em recuperar a humildade de nos reconhecermos como parte de um todo maior.

E, nesse dia, talvez a “estupidez” encontre, enfim, o seu limite. A Laurissilva ensina-nos algo profundamente ético: a vida não nos pertence; nós é que pertencemos à vida. Cuidar dela é reconhecer que somos parte de um mundo que nos ultrapassa em escala, tempo e valor. Talvez a estupidez humana não seja infinita. Talvez apenas dure enquanto continuarmos a confundir progresso com perda, liberdade com abuso, e natureza com recurso. Quando percebermos que proteger a Laurissilva é proteger-nos, então, sim, a estupidez começa a encontrar o seu limite.