Myanmar realiza primeiras eleições gerais desde golpe militar de 2021
As eleições gerais birmanesas arrancam este domingo, num exercício que, segundo críticos, não vai restaurar a frágil democracia do país - destruída pelo exército na sequência do golpe militar em 2021 -, nem acabar com a guerra civil em curso.
Sem qualquer oposição real, a junta militar que governa Myanmar (antiga Birmânia), apresenta o escrutínio como um passo rumo à reconciliação, quase cinco anos após tomar o poder e derrubar o governo eleito da Prémio Nobel da Paz Aung San Suu Kyi.
A tomada do poder provocou uma oposição popular generalizada, que se transformou numa guerra civil, que compromete a realização das eleições em áreas disputadas.
No domingo, realizam-se eleições apenas em 102 dos 330 municípios do país e, mesmo após as duas fases seguintes - em 11 e 25 de janeiro -, 65 municípios serão impedidos de votar devido aos combates no país entre o exército, grupos guerrilheiros étnicos e forças de resistência.
Grupos de direitos humanos e da oposição afirmam que as eleições não serão nem livres nem justas e que o poder deverá permanecer nas mãos do líder militar, o general Min Aung Hlaing. Críticos duvidam de uma transição para um regime civil.
Richard Horsey, analista do International Crisis Group, lembrou, em declarações à Associated Press (AP), que as eleições estão a ser conduzidas pelos mesmos militares responsáveis pelo golpe de 2021.
"Estas eleições não são credíveis", afirmou. "Não incluem nenhum dos partidos políticos que tiveram um bom desempenho nas últimas eleições ou nas anteriores", reforçou.
De acordo com analista, a estratégia dos militares passa pela eleição da formação que lhes é próxima - o Partido da União, Solidariedade e Desenvolvimento (USDP, na sigla inglesa) -, permitindo a transição de um regime militar para um governo com "aparência civil", que perpetuará o controlo do exército.
Isso permitirá aos militares afirmar uma pretensa narrativa de inclusão, no espírito de uma proposta de paz da Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN), que apelou ao "diálogo construtivo entre todas as partes envolvidas", para que possam "procurar uma solução pacífica no interesse do povo".
Também serve de justificação para que vizinhos como China, Índia e Tailândia mantenham o apoio ao regime, que, de acordo com o exército, promove a estabilidade na nação.
Os militares tomaram o poder no país em 01 de fevereiro de 2021, alegando que as eleições de 2020 --- que deram a vitória esmagadora à Liga Nacional para a Democracia (NLD, na sigla em inglês) de Suu Kyi --- eram ilegítimas devido a alegadas irregularidades em grande escala no registo de eleitores. Observadores independentes não encontraram problemas significativos.
Embora 57 partidos tenham apresentado candidatos, a maioria está a fazê-lo apenas nos próprios estados ou regiões. Seis partidos competem a nível nacional e têm a possibilidade de alcançar assentos no Parlamento, embora as regras tornem provável que o USDP, pró-militar, surja em posição de liderar um novo Governo.
A comissão eleitoral ainda não divulgou o número total de eleitores qualificados, mas em 2020 havia mais de 37 milhões, num país com cerca de 50 milhões de habitantes.
A ex-líder Aung San Suu Kyi, de 80 anos, e a LND não participam no escrutínio. A Nobel da Paz cumpre uma pena de 27 anos de prisão e o partido foi dissolvido. Outros partidos também estão a boicotar a votação ou recusaram-se a concorrer sob condições que consideram injustas.
Amael Vier, analista da Rede Asiática para Eleições Livres (Asian Network for Free Elections) observou recentemente que os partidos políticos de Myanmar que conquistaram 90% dos assentos em 2020 já não existem hoje.
Uma lei de proteção eleitoral, promulgada este ano, que prevê penas severas, impôs ainda mais restrições à atividade política, proibindo todas as críticas públicas às eleições. Mais de 200 pessoas foram acusadas por distribuir panfletos ou atividades 'online' nos últimos meses.
O custo humano do conflito em Myanmar tem sido elevado. De acordo com a Associação Assistência a Presos Políticos, independente, mais de 22 mil pessoas estão atualmente detidas por crimes políticos e mais de 7.600 civis foram mortos pelas forças de segurança desde que o exército subiu ao poder.
Há mais de 3,6 milhões de pessoas deslocadas internamente, a maioria expulsa de casa pela guerra. "Myanmar está a testemunhar uma intensificação da violência, repressão e intimidação antes das eleições controladas pelos militares", afirmou o gabinete dos Direitos Humanos da ONU, acrescentando que civis estão a ser ameaçados tanto pelas autoridades militares como por grupos armados da oposição em relação à participação.
Horsey, do International Crisis Group, acredita que, após as eleições, Myanmar provavelmente verá uma escalada do conflito, à medida que opositores tentam provar que os militares ainda carecem de legitimidade popular.
Os militares governam Myanmar desde a independência do Reino Unido, em 1948, com exceção de um interregno democrático entre 2011 e 2021, que desencadeou uma onda de reformas e otimismo para o futuro do país.